LXV. Voz

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Lothar estava deitado na cabana do Chefe Belthor enquanto um dos curandeiros remexia em suas pedras cravadas de runas mágicas.

Não, não eram runas mágicas. Eram outra coisa. As palavras inscritas, de alguma forma, inibiam a magia que feéricos, bruxas e outros seres carregavam em si. Segundo o Chefe, se usadas da forma certa poderiam recuperar sua voz, romper o feitiço que o deixara mudo.

Havia gente demais ali. Além de Belthor e do curandeiro, a Rainha das fadas, o feérico que cuidara de Rolf e muitas outras criaturas assistiam ao procedimento, todos ansiosos para compreender como aquelas pedras funcionavam. Um dos menores, uma criatura escamosa com metade da altura de uma fada, absorvia cada detalhe e vez ou outra questionava as ações dos humanos.

Além do próprio Lothar, do Chefe e do curandeiro, estava ali Biattra, a guerreira que demonstrara interesse especial no ex-escravo desde o momento em que os dois tinham se conhecido. Se pudesse falar, ele já a teria cortejado, ou ao menos tentaria. Não sabia exatamente como era feito esse tipo de coisa, mas aquela mulher o fazia querer correr o risco.

Agora ela o encarava da entrada da tenda com olhos grandes e castanhos atentos. Ele estava grato por sua presença ali. Era provavelmente um dos únicos rostos que o viam como uma pessoa necessitada de ajuda e não um experimento a ser estudado e documentado.

— Agora preciso aquecer as pedras. — O curandeiro comentou, estendendo o braço para o braseiro que estava largado no chão. — A energia natural do fogo, em contato com o poder das runas, deve romper o nó mágico criado pelo feitiço.

— Deve romper? — Fedra indagou, ao que o curandeiro respondeu com um grunhido positivo.

— Isso não é uma ciência exata, rainha. — Foi a vez de Belthor intervir, deixando que o curandeiro terminasse o serviço. — Ao contrário de sua magia, que pode ser usada como lhe convém, essas runas estão além de nossa compreensão. Só repetimos o que nos foi dito, a forma como fomos ensinados a usá-las.

— Ensinado por sua deusa. — A Rainha comentou, sem esperar por uma resposta. O Chefe apenas assentiu.

Lothar sentia-se confuso desde que seus irmãos tinham chegado. Fora ensinado pelos outros escravos que seu povo seguia um deus único e todo-poderoso. Já os elfos lhe obrigavam a rezar ao seu panteão aparentemente interminável de deuses, cada um deles com uma função no mundo.

Asmin, que o acolhera e ajudara em seus primeiros dias na Floresta, venerava uma deusa sem face que reinava sobre espíritos e deuses menores. Uma deusa feminina como as filhas que colocara ao mundo para caçar as fêmeas e copular com os machos de outras raças.

Ele sabia que cada um daqueles povos tinha sua própria crença e que todas elas coincidiam em alguns pontos, mas divergiam na maior parte deles. De alguma forma, eles viviam sem enlouquecer pelo constante bombardeio de dogmas. Lothar também vivera assim, ao menos até o momento em que os seus chegaram e disseram que havia uma única deusa e que ela vivia em terras distantes, mas em contato com o seu povo, o povo dos homens.

O escravo se perguntava como ela era, o que dizia, qual era o som de sua voz. Gostaria de ter aquelas respostas, de saber que ela era real, que não era apenas uma história inventada por aqueles viajantes.

Mas isso não aconteceria tão cedo, ele temia. Agora, seu povo se preparava para a guerra e não havia tempo para os pífios sonhos de um escravo libertado. Lothar aguardaria, então.

Todos ficaram em silêncio quando o curandeiro aproximou as pedras quentes da garganta do paciente. Parecia que o mundo prendia a respiração conforme o homem massageava e pressionava o pescoço de Lothar com força suficiente para que este começasse a tossir.

As pedras eram desconfortavelmente quentes e o toque era bruto, mas de alguma forma Lothar sentia que algo que pesava sobre suas cordas vocais se aliviava. Ele nunca percebera aquele nó, aquele desconforto, até o momento em que ele começara a ser retirado. Após o desconforto ocasionado pelo calor, veio o alívio. Quando o curandeiro finalmente parou a massagem, o paciente engoliu em seco.

— Tente falar. — Belthor ordenou. O pensamento enviou um calafrio pela coluna de Lothar. Não pensara que faria aquilo outra vez em sua vida.

— A... — Foi tudo que conseguiu dizer. Sua garganta doía.

As criaturas mágicas que os observavam exalaram, surpresas. Insistente, Lothar tentou novamente, pedindo por aquilo que seu corpo parecia ansiar mais que tudo:

— Á-água. — Disse, por fim.

Com o canto do olho, ele viu que Biattra foi imediatamente até o lado de fora da barraca para buscar o líquido. O curandeiro sorriu, orgulhoso do trabalho bem feito.

— As pedras cobram seu preço do paciente. — Comentou, explicativo. — O calor ajuda, mas a energia do paciente também é gasta no processo. Por isso pede água.

No instante seguinte, a bela mulher caminhou novamente para dentro da tenda, estendendo a Lothar uma vasilha cheia de água que ele sorveu vorazmente.

Naquele momento, em que ele entregou a Biattra a vasilha e ela sorriu, os olhos fixos nos seus, a única coisa que Lothar conseguia pensar era: "agora que posso falar, o que devo dizer?"

Ele não teve tempo de decidir, no entanto. Rapidamente, todos começaram a sair da tenda para realizar seus respectivos afazeres. Era hora de preparar para a guerra.

Lothar apenas encarou enquanto Biattra saía pela porta e o deixava sozinho com Belthor no ambiente silencioso.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Where stories live. Discover now