Cartas Ignoradas

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CAROL

 As luzes do quarto foram apagadas e não seriam mais acesas por um bom tempo. As paredes e teto agora repousariam na solidão. Não havia móveis, quadros nem brinquedos ali. A senhora Dorothy estava de mudança, e aquele era o quarto de sua casa grande. Aquela casa, que já foi símbolo de bons momentos, agora representava o seu fracasso: seu marido havia morrido e a moça não conseguiria mais sustentar aquilo tudo sozinha, então resolveu substituí-la por um apartamento mais longe do centro de York, visando menos gastos. Era sua função continuar sustentando sua filha, ainda jovem, equilibrando as despesas.

 Carol ainda era jovem quando se viu mudando de casa após a morte de seu pai e lidando com a solidão: sua mãe gastava todo o tempo que tinha para trabalhar e tentar pagar todas as contas  e não encontrava momento para brincar com ela. 

 Foram até seu novo lar andando e seguindo o caminhão de mudança, Dorothy dava a mão para a filha pequena. Carol gostava de chutar as pedrinhas da calçada.

 -Mãe, como é  a nossa nova casa?

 -Nós vamos morar numa casa grande, onde vivem outras pessoas também - dizia a mãe, tentando confortar a situação - Você vai adorar, vão ter vários amigos para brincar!

 -É sério? Legal! - a menina ficou animada com a ideia de ter crianças pra se divertir.

 -Pois é! Lá vamos viver perto de nossos vizinhos, cada um em seu quarto, e seremos todos amigos!

 A mãe não precisou se preocupar com uma desaprovação de Carol, ela havia contado como seria a vida na pensão da forma certa, escondendo as desvantagens.

 Quando chegaram no local, viram um homem de meia idade esperando-as no portão. Era Ian, o porteiro, que as deu algumas instruções enquanto passavam pelo corredor principal.

 -É importante que vocês arrumem as coisas e tranquem o quarto quando saírem, porque a Senhora Nancy odeia desorganização.

 -Certo - assentiu Dorothy.

 -Tome conta de sua filha, não deixe que quebre nada da pensão.

 -Pode deixar, ela não é de fazer bagunça.

 -Além disso, tem outra coisa muito importante - ele olhou para os lados e disse com extrema seriedade, pedindo que a moça chegasse mais perto. -Não fique "prestando atenção" no que acontece por aqui, várias situações suspeitas estão acontecendo em sequência e precisamos manter isso em secreto, entendido? Deixe a investigação com a polícia.

 Dorothy ficou preocupada com a fala de Ian. Como eles oferecem vaga para um lugar com acontecimentos "suspeitos"? Tinha medo disso, principalmente por causa de sua filha. Como viveria assim? Seria vizinha da insegurança? E o pior de tudo é que não tinha opção, era isso ou rua. Sentia que ficar na pensão era um erro menor, bastava proteger muito bem Carol.

 -Entendi.

 -Então é só isso por enquanto, aqui está  a sua chave.

 Ela pegou a menina no colo e foi para o quarto, era o começo do recomeço.

FORD

 Como esperado, não saíra do quarto naquele dia. A desmotivação aumentava toda vez que decidia acordar para viver mais um dia. Olhou pela janela e percebeu que o carteiro havia deixado algumas cartas no portão da pensão onde morava. Ficou esperançoso, afinal  era a única coisa que poderia sentir agora. Uma nova decepção? Talvez. Enquanto guardava suas coisas e se preparava pra tirar uma soneca, ouviu a porta do apartamento batendo. Não era ninguém, quer dizer, ninguém de seu interesse, apenas a filha da moça que havia se mudado para aquela pensão há três dias, trazendo uma conta de luz.

 - Bom dia, senhor Ford, minha mãe me disse pra te entregar isso aqui.

 -Jogue naquela pilha - respondeu o velho com sua voz seca e arrogante, querendo que a garota fosse embora logo.

 A menina colocou  a conta na pilha imensa com as outras, nenhuma tinha sido paga, ou seja, Ford estava estendendo suas dívidas ao máximo. Percebeu que lá havia avisos de despejo, e no canto do quarto uma humilde rede, algo como uma raquete, se acomodando calmamente. Senhor Ford era um velho desempregado, carrancudo e introvertido, que todo dia saía para caçar borboletas nas campinas da cidade. Escrevia cartas para parentes distantes pedindo dinheiro, emprego, ou às vezes só perguntado como eles estavam. Nunca recebeu nenhuma resposta.

 -O senhor joga tênis? - perguntou a jovem, que não tinha certeza do que aquilo se tratava.

 -Aquilo não é uma raquete, e eu não jogo tênis - a vontade de mandá-la embora cresceu.

 -Ah... - ela fingiu que entendeu, mas logo quis uma explicação - Mas como assim?

 -Escute aqui, menina, você não precisa voltar para casa não?

 -Tenho, mas me explica como que o senhor caça antes.

 -Saia daqui que eu tenho mais o que fazer! - O homem virou-se para ela com raiva.

 A jovem percebeu que o velho não estava de bom humor para conversar nem simplesmente responder uma pergunta. Ela decidiu que era melhor ir embora e se virou para a porta do apartamento. 

 Ford se sentia aliviado por não precisar responder uma pergunta para uma criança, mas ao mesmo tempo se viu um pouco culpado. Já não era útil para ninguém, não fazia a diferença para as pessoas e nem para si mesmo, se tornou um arruinado que só é sustentado pela autopiedade. Mandando a garotinha embora ele retomou sua honra, mas lembrou-se que essa nem tem mais valor. Desde quando um miserável tem moral para gritar com uma criança? Pensou duas vezes.

 -Aquilo é uma rede para caçar borboletas. - ele murmurou enquanto a menina já estava abrindo a porta para sair. Aquelas palavras a motivaram.

 -Posso ir caçar com o senhor? Eu adoro brincar no mato!

 -Você nem sabe mexer numa rede ainda. Escuta aqui, não era só aquela resposta que você queria? Já pode sair.

 -Eu posso ir amanhã e o senhor me ensina, eu prometo que aprendo rápido! Que horas partimos? - a menina insistia em sua proposta.

 -Eu vou pros campos bem cedo, não acho que você aguentaria - desafiou a garota, se sentindo um pouco mais confortável.

 -É claro que eu consigo! Quer apostar?

 -Bem, eu saio sempre às quatro, pontualmente, eu duvido que crianças conseguem.

 -Vamos fazer um trato, se eu acordar às quatro, você me ensina. - estava determinada a caçar com o velho.

 Ford viu ali uma boa oportunidade para conseguir um almoço para amanhã.

 -Se você trouxer um lanche para nós, eu te ensino, mas tem que ser bom!

 -Feito! Vou falar com a minha mãe.

 A menina se dirigiu à porta com entusiasmo, ela teria uma nova aventura com um novo amigo! Com um sorriso no rosto, passou pelo corredor e entrou em casa.

 Enquanto isso, Ford continuava sentado em sua cadeira da escrivaninha, pensando no que acabou de acontecer. Vai dar certo? Valeu a pena? Ele não tinha mais opções do que fazer amanhã, então, por que não?

Caçador de BorboletasWhere stories live. Discover now