Abandono

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 Um mapa completo do sistema de esgoto da cidade, marcações em vermelho, alguns locais já pintados em vermelho, verde e azul. Trabalhava na prefeitura há alguns anos, sabia do que se tratava, mas as intenções do seu filho com aquilo eram um mistério. Eddie, já sonolento, arrumou uma desculpa rápida:

 -São só trabalhos antigos de escola, mãe.

 -Engraçado, quando limpei seu quarto ontem não havia nada disso nas paredes.

 Ela já começava a desconfiar do rapaz, tinha que despistar.

 -Ah, mãe, quis lembrar um pouco das minhas memórias do ensino médio, só isso.

 -Eu sei que é difícil se organizar depois da escola Eddie, mas você precisa seguir em frente, e logo que conseguir dinheiro, vai direto pra faculdade, entendeu?

 -Claro, mãe, mas eu gosto de rever um pouco o que eu fiz. As coisas passam rápido demais, mas mesmo assim, agora com meu novo emprego estou mais tranquilo com o futuro.

 -Eu não lembrava de tantos trabalhos com mapas.

 -Nossa, não faz ideia de como a sra. Armstrong de Geografia era chata com essas coisas.

 -Entendo... mas chegou a hora de dormir, não é mesmo? Nós dois temos compromissos cedinho amanhã.

 -Falou tudo, senhora Evans.

 -Boa noite filho, te amo muito.

 -Eu em dobro... - disse o jovem baixinho enquanto fechava os olhos. O que menos precisava era que sua mãe suspeitasse do que estava fazendo, logo agora que o planejado já tinha ganhado forma! Aquele susto serviu até de alerta para ele, mostrando que não podia mais adiar seus planos, ou quem sabe nunca tê-los começado.

 Quase tudo escuro.

 Eddie se viu naquele cesto quentinho e pequenino, com mínimas forças para se mexer com precisão, como uma paralisia do sono, apesar de estar num lugar bem diferente de seu quarto.

 -Apesar de todos esses planos, nunca saberá como é viver à mercê da impunidade. Acha que ficará calado, mas não há como me manter aqui com a criança. Eu posso até ajudá-la com comida e escola, mas só sigo minhas próprias regras.

 Ele olhava para a figura de seu pai naquela sala escura, até que o homem parou e fitou o pequeno Eddie dentro do cesto, com um olhar vazio. De repente estava bem de frente com o pai, ainda dentro do pequeno cesto, enquanto a esperança do inesperado agia.  

 Atrás do homem surgiu uma nuvem de borboletas roxas e amarelas voando com rapidez, centenas delas se espalhando pela única área iluminada, num formação levemente organizada. Vieram e pararam de avançar quando chegaram ao seu pai, onde passaram a contornar seu corpo por inteiro. Por um instante só se viam várias delas formando uma silhueta humana, até que retornaram para a escuridão. Desde aquele contorno, o corpo do pai não estava mais lá.

 O que vocês fizeram, borboletas? Ele era só um bebê.

* * * * *

 Dorothy pensou rápido, pegou a filha pelo colo enquanto ela estava de costas e pulou no móvel mais próximo: o balcão do hall, onde as chaves e correspondências eram guardadas. Tremia de medo enquanto segurava a filha com força e ouvia os primeiros passos dos invasores.

Apesar da agilidade, notar a presença da moça e da garota era inevitável.

-Já te vimos aí desde que chegamos, se levanta logo.

 Dorothy ficou de pé, ainda com o braço tampando o rosto da filha, com um olhar de medo para o homem que a chamou.

 -Por favor, ela não pode perder a mãe também. - clamou ela.

 -Ei, recruta, fica vigiando essa moça e o resto do térreo, enquanto pegamos o que precisamos, vamos ter que ser rápidos desta vez. 

 Logo em seguida da ordem, veio o jovem bem menor que os outros três, segurando uma faca com mãos de uma firmeza duvidosa, apontando para eles enquanto os maiores subiam as escadas. Mais uma noite normal em Tang Hall começava.

 Apesar de todo o ressentimento que criou em volta das próprias dificuldades, Ford ainda sabia que não iria a lugar algum sem Dorothy e Carol, e seu mais novo exercício mental era aprender a construir uma vida nova, sozinho como sempre viveu, mas digna dessa vez. Lembrou do último emprego que teve como coletor de lixo, e criou esperanças em exercê-lo de novo, apesar de ter sido demitido por brigas com outros funcionários. Quem sabe em outro bairro, mais seguro, onde ninguém o conhece? O maior desafio seria arranjar uma casa para sumir de vez da vista delas, e assim livraria esse fardo de suas amigas.

 -Ei Ford, quem você acha que engana?- passou a fazer o que mais fazia no tédio de seu apartamento: se questionar e responder por si mesmo. -Elas salvaram a sua vida, não percebe que elas viraram suas amigas quando você mais precisava, e agora você está aqui sentado no meio do nada. As deixou sozinhas à noite lá na pensão! Espere, lá na pensão?!

 Eduard acordou suando frio, levantando rapidamente o abdômen depois de ver o pai sumir, dessa vez em sonho. Apesar de tão novo na época, sempre guardou a lembrança de seu pai saindo pela porta de casa, de casaco e guarda chuva, e o fardo voltou para assombrá-lo naquela noite. Levantou rapidamente da cama, ignorou a tontura e as pernas bambas enquanto arrancava os mapas da parede, não podia mais estampar aquela vergonha na casa que sua mãe tanto trabalhava para manter. Silenciosamente, pegou a bicicleta perto da porta da frente e seguiu em direção à rua da próxima invasão, bem perto dali, para finalmente impedi-los pessoalmente.

 -Você já sabe o que tem que fazer! Vá lá, elas podem estar em perigo! - Ford voltou a cobrar de si mesmo. -Não, não vou mais interferir na vida delas! - respondeu com convicção. -Ah é? Se não proteger as únicas pessoas que gostam de você, o que mais lhe resta?

 O relógio já marcava 23h30min quando os invasores vasculhavam o segundo e terceiro andares e os dois corriam para a pensão. Era hora de decidir, de uma vez por todas, quem realmente podia viver em paz em Tang Hall.

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⏰ Last updated: Jul 09, 2020 ⏰

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Caçador de BorboletasWhere stories live. Discover now