Desordem

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 -Uma série de casos de vandalismo e invasão pendular de propriedade, comandados pela máfia italiana, que se refugia por aqui já faz um tempo!? Do que está falando minha filha, eu nem sabia que você entendia o que essas coisas queriam dizer. Não acha que pediu emprestado da imaginação essa história?

 -Na verdade, eu não sabia o que era "vandalismo" nem "pendular", mas o prefeito Quincy me explicou, e eu não estou imaginando nada disso! Ele me mostrou mapas e fotos do que aconteceu, é tudo verdade mãe, e é a única explicação para isso tudo.

 -Mesmo se for, borboletinha - ela olhou para baixo, com a mão na testa. Depois das constantes visitas às campinas em busca delas, esse virou seu novo apelido -O que faríamos para impedir tudo isso, se é isso que você quer? Você acabou de me dizer que a prefeitura busca amenizar esses casos dia pós dia, e sem grande progresso.

 -Sim mamãe, mas eu garanto que o prefeito não me mostrou tudo isso à toa, ele sabe, de alguma forma , que apenas os moradores dessa área vão conseguir resolver tudo isso, já que sofrem pelas invasões.

 -Minha, filha, escute bem - ela chegou mais perto da garotinha. -Eu não vou te deixar se meter em assuntos com bandidos, ficou maluca? Essa gente é perigosa de verdade, quem deve resolver isso é a polícia, e você esqueceu que você só tem oito anos?

 -Eu vou fazer nove mês que vem! E eu também sei quem pode me ajudar nesse problema.

 A menina saiu do quarto e foi atrás daquele que seria a pessoa ideal para ajudá-la - bem, pelo menos era o que ela achava.

 -O quê!? Mas como assim, o que você quer que eu faça?

 -Eu pensei que você queria resolver isso também, e já que você mora há tanto tempo aqui, conhece o comportamento dos invasores e como evitá-los.

 -Você viu que nós tentamos, fomos à prefeitura e tudo mais, mas só o que aconteceu é que eu fui insultado e expulso! Não adianta Carol, eles não vão resolver nada até que os afete!

 -É por isso que eu acho que a gente deveria investigar isso mais profundamente, e por conta própria dessa vez.

 -Quer que eu te mostre o que eu sei deles? Pois lhe digo, são moleques que se esgueiram pela ruas desse bairro, os filhos dos caras dessa máfia aí que você falou, eles são espertos, sabem tudo quanto é tipo de truque com fechaduras e alarmes. Já os vi tentando entrar numa madrugada que eu não consegui dormir, eu apanhei feio. Quer achá-los? Vá na praça, escola, nessa parte são só pessoas comuns, agora, se você tocar num fio de cabelo deles, já era. Era isso que você queria? agora sai da frente que eu vou tentar arranjar o que comer essa noite.

 Ele havia jogado todas aquelas informações com tanta má vontade que Carol decidiu apenas dar licença e voltar para o apartamento da mãe.

 Ford se levantou da cama e quando se aproximava das escadas para o térreo, a menina avisou:

 -Ei Ford! Tem meu prato do jantar lá em casa, estava sem fome.

 Ele olhou para trás, ainda nervoso, e encarou Carol. Sabendo que procurar por comida quase nunca dava certo, aceitou a proposta. Apesar da vergonha, simplesmente não tinha opção.

 Dorothy já preparava a cama para as duas, e lá estava o velho comendo com gosto ao lado da garota, que o encarava. Ford estava tão distraído que deixou as lágrimas à mostra.

 -O que houve, Ford? Pode me contar se tiver algo de errado.

 Ele fechou os olhos e começou a gritar:

 -É que eu cansei, chega! Eu sei que não tem nada pior do que sofrer necessidade, mas olha o que eu estou fazendo, eu passei os últimos dias comendo às custas da sua mãe, como um cachorro inútil! Eu preciso comer, é claro, mas não na conta de pessoas que eu acabei de conhecer. 

 A voz rouca de Ford num tom mais alto chamou a atenção de Dorothy, que veio junto aos dois na mesa.

 -Cortaram minha água há três dias, e a luz vai embora semana que vem, mas eu preciso arranjar meu jeito e manter o único de útil que eu ainda tenho: eu mesmo. - debruçou o queixo na mesa para esconder as lágrimas e olhou para frente, viu Dorothy na sua frente, preocupada.

 -Como você disse, Ford, não tem dinheiro nem para comprar comida, e é por isso que ainda te ajudamos com isso, nunca vamos deixar um amigo passar fome. - Carol abaixou a cabeça na direção da dele.

 -Que amigo é esse que só arranja uma briga na prefeitura e atrapalha vocês a resolver o problema?

 -Olha, Ford - os dois olharam para a mãe, que começara a falar - não estaria te deixando comer se não fosse porque eu e Carol te queremos bem, e eu entendo que você está sentindo, sabe, aqui em casa as coisas também não estão tão fáceis. As minhas férias de começo do ano acabam em dois dias, e logo a Carol vai começar a escola, que tal se arranjarmos um emprego para você?

 Ainda com ela abaixada, colocou os braços embaixo da cabeça e suspirou.

 -Ninguém vai querer um velho inexperiente e fedorento.

 Ford se levantou, o rosto manchado de lágrimas e uma expressão de "certo, vou dar meu jeito porque opção não tenho". Um homem sofrendo pela medíocridade e pobreza.

 Carol se aproximou dele e tocou seu braço.

 -Se sente melhor? Vamos ver se um bom banho te acalma!

 -Não! Não vou mais usar vocês duas!

 Sem saber ao certo como lidar com aquilo, Ford correu, fugiu daquele apartamento. Não como uma gazela foge de um leão que quer devorá-la, mas como um menino ridicularizado pelos amigos por conta do aparelho dental novo. Ford já havia desistido de quase tudo, menos da vontade de dar a volta por cima com honra. Pensou que não poderia mais viver de forma digna, mas também não aceitaria comer e morar de graça, causando confusões com a família que o acolhe, não merecia aquilo.

 -Volte aqui, Ford!- Carol foi até a porta e o seguiu pelo corredor.

 O velho arrancou o braço da menina que o segurara pelo casaco e continou correndo, sem olhar para trás. O som das botas velhas e grossas ecoaram no prédio. Desceu as escadas, pegou a chave do porteiro que dormia e abriu o portão da pensão, continou, mas agora num ritmo mais lento, de quarteirão em quarteirão lá estava ele, a desesperança tinha um nome e agora podia ser vista caminhando nas ruas de York. Passou pela praça, na casa de Eddie perto da loja de discos, do Paul Jone's, e quando se deu por gente outra vez estava no campo de borboletas, na estrada de chão perto da cerca.

 Durante a noite as borboletas não voavam por lá, e por isso o velho passou a olhar fixamente para a grama, procurando um motivo para viver ou morrer. Era ele, o campo e o frio daquela noite, que nunca mais sairia de suas memórias.

 A verdade era que o que ele procurava nenhum banho responderia.

*****

 Dorothy ligava para a polícia dentro do quarto, enquanto não havia mais o que fazer. Carol encostou o ombro na mãe e chorou.

 -Não se preoucupe, borboletinha, ele não iria fugir para tão longe, você é muito especial pra ele, não nos abandonaria assim. Ele pode estar confuso, mas assim que acharem-no vamos encontrar um emprego para ele.- Ela penteou os cabelos pretos da filha com os dedos, e o telefone na outra mão.

 Carol mudou sua expressão de triste para determinada e rebelde subitamente, e assim, como o velho fez, saiu correndo na mesma direção.

 -Eu vou atrás dele!

 -Ficou maluca!? Venha já para cá agora!- Dorothy seguiu atrás dela, ainda com a desvantagem de ser mais lenta que a filha.

 Ambas desceram as escadas, fazendo mais barulhos naquela noite. Quando Carol ia em direção à porta de entrada da pensão, congelou. Ouvira barulhos bem altos vindos do lado de fora, quando a porta começou a se contorcer até alguém arrombá-la.

 Com Carol e Dorothy no hall de entrada, uma nova invasão havia começado.

Caçador de BorboletasWhere stories live. Discover now