Meios-termos

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"A poesia é inspirar."

— Bob Dylan.

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Améllia Howtwel

Ásia, África e duas Américas. Três continentes para explorar muito em breve, mas ainda existem  seis meses pela frente. Estou organizando uma planilha no Excel onde gerencio meus gastos e pondero onde posso ceder para comprar uma bota. Minha gata Lea, (a qual salvei das ruas à uns quinze dias atrás) se espreguiça pelo carpete do meu mini apartamento alugado.  Espio as paredes e percebo que esse foi o terceiro lugar que morei nos últimos 18 meses. Tive que ir adequando os gastos para economizar afinal a vida de mochileira exige disciplina. E disciplina significa mudar de lar com frequência. Pego Lea com um grande esforço e a abraço num só golpe."Só mais seis meses" , digo baixinho.  

É domingo à noite, dia e horário perfeito para uma bad canalizada. Coloco Lea no chão e coloco Yellow Ledbetter nos fones. Pego um cachecol rosê e sorrio para Lea antes de fechar a porta branca e áspera. Suspiro para o nada e sigo pela avenida principal, estou indo até um pub  que fica há uns 900 metros de distância, ou, pra ser mais exata, 12 minutos. Eu não vejo a hora de viajar, ser do mundo. O agora parece filme de guerra: entediante, chato, sem sentido e desnecessário. Talvez o futuro nos dê oxigênio para seguir. 

Gian Carbone

Eu sei que havia te contado o meu segredinho sobre a fotografia. E você pode ter ficado tentando juntar as peças para descobrir como é que eu escondo esse trabalho de todos os amigos, meus pais e vizinhos. Principalmente dos vizinhos. 

Bom, aos domingos eu toco violão em pubs aleatórios de Turim. Não é a minha grande paixão, mas eu preciso pagar contas e manter minha arte, minha verdadeira paixão à salvo. Rouben Yetz, ou, como a mãe dele, seus amigos e como principalmente consta em sua certidão de nascimento: Enrico Giaspi, é o vocalista da nossa banda composta por três pessoas: eu, ele e Mariano Eltorre, ou simplesmente o cara do baixo que fala pouco. 

Pincelamos os anos 70 com David Bowie e agora estamos nos anos 80 com Bed of Roses do Bon Jovi. Gosto de tocar e sentir a energia da pequena platéia que se forma à frente do pequeno palco: a alegria dos grupos de amigos, os sorrisos dos jovens casais, a introspecção das pessoas sentadas sozinhas em mesas individuais.

De repente estamos em um solo de Should've Come Over do Jeff Buckley, e Enrico, ou melhor, Rouben se debruça no palco e estende o microfone em direção a platéia, que em uníssono retribui um perfeito "Oh lover, you should've come over, yeahh yeahh".  

Nesse momento, levanto o rosto e sorrio para o público. E lá está ela: a mesma garota da galeria. De cachecol e vestido acinturado na altura dos joelhos dessa vez. Quando me vê sorri de lado e desvia o olhar. A única vontade que tenho é de caminhar em sua direção e dizer que não parei de pensar em seus olhos castanhos, seu dialeto certo da palavra "talvez" e seu meio sorriso desde aquele dia.

O show acabou nos 25 minutos que se seguiram e eu pude escolher melhor as palavras e a abordagem dessa vez.

Améllia Howtwel

Quando entrei, me servi de coca diet  e me sentei no canto dos solitários. A música era ótima, mesmo que o vocalista desafinasse um pouco nas notas altas. O baixista agia como todos os baixistas por aí.  Eu nunca acreditei em destino, maktub ou qualquer outra coisa que insista em dizer que tudo na nossa vida está programado. Acho que a beleza existe mesmo nas coincidências e no acaso, consequências das escolhas que fazemos. Mas lá estava ele, com o seu olhar penetrante e seus sapatos cor de cetim azul. Sorrindo para o público como quem sabe o quer da vida. Lá estava ele outra vez.

Outro ladoWhere stories live. Discover now