Capítulo Vinte e Oito: (Re) Começo

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eita que hoje é fogo no parquinho


 Minutos encoscorados haviam se transcorrido desde que Toni Topaz, arfante e espavorida em sua cadência de respiro, fez de debandar do frontispício do Whyte Wyrm em pernadas tão apressuradas quanto um plácido e passageiro chuvisco de verão. Seus pulmões sovados pelo obstinado tabaquismo lhe desaceleravam o passo significativamente, coxeando um par de vezes, mas aferrada como estava, nem mesmo a falta de ar lhe coibiria do encargo de resgatar Cheryl das garras facínoras de seus pais cetrinos. E como aligeirava-se, a garota Topaz em uma busca desenfreada por seu amor, entre arbustos e rochedos, para o recôndito das faias da Floresta Fox, engolida pelas enormidades das sombras dos pinheiros escrupulosos, postos em amplas fileiras perdulárias. Os gravetos no chão da floresta estorcegavam-lhe a carne em seus tornozelos e panturrilhas, mas a epinefrina vibrátil em suas veias lhe inibia a sensação candente de um punhado de exíguos cortes abertos em sua pele acanelada – até que um acanhado ajuntamento aborígine de raízes de árvores (formando um real muramento verde) enovelou-se por seu Doc Martens direito, e assim foi Toni desmoronada ao chão em seu declínio derrocado, caindo em seus joelhos e cotovelos – vegetação ressequida crepitando com seu peso, esfolando-lhe a pele sobre as rótulas escanzeladas. Gemeu de dor. Mas a dor sentida não fora proveniente das escoriações e fissuras denotadas aqui ou ali em sua epiderme após a queda – fora do coração partido, que começara a lhe depauperar, arrefecendo-lhe os ossos e as vísceras. Realidade manante inundou seus brônquios; havia medo ressumado em suas lágrimas dispersas pelo comprimento do rosto castanho. Medo de perder a sua tão amada Cheryl Blossom.

Cheryl, seu amparo, sua musa, seu martírio, sua paixão. Lírica, porém um tanto quanto trágica, como um conto homérico. Uma carestia que lhe era suprida; um abstruso romance epopeico parido do imo de duas garotas desprovidas de um amor primigênio. O que faria sem ela, e o que não faria por ela? Céu e inferno não eram estremadura limiar que lhe absteriam de buscar pela garota com quem namorava – com quem concebera um bebê e com quem havia erigido uma pequena família. Lhe chamejava a musculatura das pernas, tal como também lhe chamejava a arrebatada centelha do furor ao âmago em seu peito. Soergueu-se Toni em seus joelhos, arquejante, reconquistando o fôlego que se havia esvaído de seus pulmões. E então, tornou a trafegar por seu caminho para o rio Sweetwater, tenaz, pronta para desencarcerar o amor de sua vida. E não tardou, de tal forma, para que em seus ouvidos se fizessem presente os sonidos rumorejantes da fluência indubitável do facinoroso curso d'água caliginosa; foram tantas as demais vezes em que estivera ali, pertencendo aos braços de sua amada num momento de ávida e desvairada paixão (silhuetas sob as estrelas da madrugada, sob o sol da manhã), que não teria como equivocar aquela sonoridade aquígena com quaisquer outra que fosse.

Rumou, a ávida Topaz, em direção àquele som tão famigerado, diligenciando pela garota que lhe havia docilizado; que havia visto nela alguém real, em sua carne e sua alma, e com quem havia criado algo palpável, tangível, quase como uma dependência. Ela era dependente de Cheryl, dependente do vermelho, uma necessidade de vida. Com isto, Toni alcançou a beira do rio – e, claro, como não deparar-se primordialmente com o tão distinto vermelho dos Blossoms, destoante do verde cadavérico ao seu redor? Paletó de risca vermelho e cabelos vermelhos. Clifford Blossom fumava um charuto cubano de etiqueta vermelha.

"Ah, senhorita Topaz." Abanou a mão que empunhava o robusto charuto, para, em um ímpeto de iracúndia efêmera, desfazer-se do fumo em sequência, assolando-o com a ponta de seu caro sapato masculino. Toni soube que ele havia desejado, mesmo que por uma fração de segundo, que ela fosse àquela a ser esmagada por seus pés coercivos. "Finalmente posso conhecê-la."

Ele acomodou ambas as mãos ao interior dos bolsos da calça de linho. Tinha uma bolsa escura posta ao lado do tornozelo esquerdo como um cão morto (os pés calçando sapatos Oxford de couro cor-de-ébano) e uma boina de algodão lhe alapando os curtos cabelos alaranjados, como um ralo gramado afogueado. Íris pardacentas, o avô de sua filha. Límpido, abastado e terminantemente cruel. Uma rodela de fumaça despargida de seus lábios, um sopro de debique arrogante. Arômata amarulenta de uísque pomposo e tabaco norte-americano nas lapelas de seu paletó. Clifford Blossom era o espectro escarlate, executor de um delito contra as leis da natureza; ele havia sequestrado Cherie, ele havia sequestrado Cheryl – a garota que, por sua vez, não estava em lugar algum para ser vista.

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