Capítulo VIII

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Mariana, a filha de João da Cruz, quando viu seu pai pensar a chaga do braço de Simão, perdeu os sentidos. O ferrador riu estrondosamente da fraqueza da moça, e o acadêmico achou estranha sensibilidade em mulher afeita a curar as feridas com que seu pai vinha laureado de todas as feiras e romarias.

— Não há ainda um ano que me fizeram três buracos na cabeça, quando eu fui à Senhora dos Remédios, a Lamego, e foi ela que me tosquiou e rapou o casco à navalha — disse o ferrador. — Pelo que vejo, o sangue do fidalgo deu volta ao estômago da rapariga!... Estamos então bem-aviados! Eu tenho cá a minha vida, e queria que ela fosse a enfermeira do meu doente... És, ou não és, rapariga? – disse ele à filha quando ela abriu os olhos, com semblante de envergonhada da sua fraqueza.

— Serei com muito gosto, se o pai quiser.

— Pois, então, moça, se hás de ir costurar para a varanda, vem aqui para a beira do senhor Simão. Dá-lhe caldos a miúdo, e trata-lhe da ferida; vinagre e mais vinagre, quando ela estiver assim a modo de roxa. Conversa com ele, não o deixes estar a malucar, nem escrever muito, que não é bom quando se está fraco do miolo. E vossa senhoria não tenha aquelas de cerimônia, nem me diga à Mariana — a menina isto, a menina aquilo. É — rapariga, dá cá um caldo; rapariga, lava-me o braço, dá cá as compressas — e nada de políticas. Ela está aqui como sua criada, porque eu já lhe disse que, se não fosse o pai de vossa senhoria, já ela há muito tempo que andava por aí às esmolas, ou pior ainda. É verdade que eu podia deixar-lhe uns benzinhos ganhos ali a suar na bigorna há dez anos, afora uns quatrocentos mil réis que herdei de minha mãe, que Deus haja; mas vossa senhoria bem sabe que, se eu fosse à forca ou pela barra fora, vinha a justiça, e tomava conta de tudo para as custas.

— Vosmecê tem uma casinha sofrível — atalhou Simão — pode, querendo, casar a sua filha numa boa casa de lavoura.

— Assim ela quisesse. Maridos não lhe faltam; até o alferes da casa da Igreja a queria, se eu lhe fizesse doação de tudo, que pouco é, mas ainda quatro mil cruzados bons; o caso é que a moça não tem querido casar, e eu, a falar a verdade, sou só e mais ela, e também não tenho grande vontade de ficar sem esta companhia, para quem trabalho como mouro. Se não fosse ela, fidalgo, muitas asneiras tinha eu feito! Quando vou às feiras ou romarias, se a levo comigo, não bato, nem apanho; indo sozinho, é desordem certa. A rapariga já conhece quando a pinga me sobe ao capacete do alambique; puxa-me pela jaqueta, e por bons modos põe-me fora do arraial. Se alguém chama para beber mais um quartilho, ela não me deixa ir, e eu acho graça à obediência com que me deixo guiar pela moça, que me pede que não vá por alma da mãe. Eu cá, em ela me pedindo por alma da minha santa mulher, já não sei de que freguesia sou.

Mariana ouvia o pai, escondendo meio rosto no seu alvíssimo avental de linho. Simão estava-se gozando na simpleza daquele quadro rústico, mas sublime de naturalidade.

João da Cruz foi chamado para ferrar um cavalo, e despediu-se nestes termos:

— Tenho dito, rapariga; aqui te entrego o nosso doente: trata-o como quem é e como se fosse teu irmão ou marido.

O rosto de Mariana acerejou-se quando aquela última palavra saiu, natural como todas, da boca de seu pai.

A moça ficou encostada ao batente da alcova de Simão.

— Não foi nada boa esta praga que lhe caiu em casa, Mariana! — disse o acadêmico. — Fazerem-na enfermeira dum doente, e privarem-na talvez de ir costurar na sua varanda, e conversar com as pessoas que passam...

— Que se me dá a mim disso? — respondeu ela, sacudindo o avental, e baixando o cós ao lugar da cintura com infantil graça.

— Sente-se, Mariana; seu pai disse-lhe que se sentasse... Vá buscar a sua costura, e dê-me dali uma folha de papel e um lápis que está na carteira.

Amor de Perdição (1862)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora