Capítulo XVII

93 5 0
                                    

João da Cruz, no dia 4 de agosto de 1805, sentou-se à mesa com triste aspecto e nenhum apetite do almoço.

— Não comes, João? — disse-lhe a cunhada.

— Não passa daqui o bocado — respondeu ele, pondo o dedo nos gorgomilos.

— Que tens tu?

— Tenho saudades da rapariga... Dava agora tudo quanto tenho para a ver aqui ao pé de mim, com aqueles olhos que pareciam ir direito aos desgostos que um homem tem no seu interior. Mal hajam as desgraças da minha vida, que ma fizeram perder. Deus sabe se para pouco, se para sempre!... Se eu não tivesse dado o tiro no almocreve, não vinha a ficar em obrigação ao corregedor, e não se me dava que o filho vivesse ou morresse...

— Mas se tens saudades — atalhou a senhora Josefa — manda buscar a rapariga, tem-na cá algum tempo, e torna depois para onde ao senhor Simão.

— Isso não é de homem que põe navalha na cara, Josefa. O rapaz, se ela lhe falta, morre de pasmo dentro daqueles ferros. Isto é veneta que me deu hoje... Sabes que mais? Leve a breca o dinheiro! Amanhã vou ao Porto.

— Pois isso é o que deves fazer.

— Está dito. Quem cá ficar que o ganhe. Vão-se os anéis e fiquem os dedos. Por ora, tem-se resistido a tudo com o meu braço. A rapariga, se ficar com menos, lá se avenha. Assim o quer, assim o tenha.

Reanimou-se a fisionomia do mestre ferrador, e como que os empeços da garganta se iam removendo à medida que planizava a sua ida ao Porto.

Acabara de almoçar, e ficara cismático, encostado à mesa do escano.

— Ainda estás malucando?! — tornou Josefa.

— Parece coisa do demônio, mulher!... A rapariga estará doente ou morta?

— Anjo bento da Santíssima Trindade! — exclamou a cunhada, erguendo as mãos — Que dizes tu, João?

— Estou cá por dentro negro como aquela sertã!

— Isso é flato, homem! Vai tomar ar; trabalha um poucochinho para espaireceres.

João da Cruz passou ao coberto onde tinha o armário da ferragem e a bigorna, e começou a atarracar cravos.

Alguns conhecidos tinham passado, palavreando com ele consoante costumavam, e achavam-no taciturno e nada para graças.

— Que tens tu, João? — dizia um.

— Não tenho nada. Vai à tua vida e deixa-me, que não estou para lérias.

Outro parava e dizia:

— Guarde-o Deus, senhor João.

— E a vossemecê também. Que novidade há?

— Não sei nada.

— Pois então vá com Nossa Senhora, que eu estou cá de candeias às avessas.

O ferrador largava o martelo; sentava-se aos poucos no tronco, e coçava a cabeça com frenesi. Depois recomeçava novamente, e tão alheado o fazia, que estragava o cravo, ou martelava os dedos.

— Isto é coisa do diabo! — exclamou ele; e foi à cozinha procurar a pichorra, que emborcou como qualquer elegante de paixões etéreas se aturde com absinto. — Hei de afogar-te, coisa má, que me estás apertando a alma! — continuou o ferrador, sacudindo os braços, e batendo o pé no soalho.

Voltou ao coberto a tempo que um viandante ia passando sobre a sua possante mula. Envolvia-se o cavaleiro num amplo capote à moda espanhola, sem embargo da calma que fazia. Viam-se-lhe as botas de couro cru, com esporas amarelas afiveladas, e o chapéu derrubado sobre os olhos.

Amor de Perdição (1862)Where stories live. Discover now