Capítulo IX

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Duas horas se detivera João da Cruz fora de casa. Chegou quando a curiosidade do estudante era já sofrimento.

— Estará seu pai preso?! — disse ele a Mariana.

— Não mo diz o coração, e o meu coração nunca me engana — respondera ela.

E Simão replicara:

— E que lhe diz o coração a meu respeito, Mariana? Os meus trabalhos ficarão aqui?

— Vou-lhe dizer a verdade, senhor Simão... Mas não digo...

— Diga que lho peço, porque tenho fé no bom anjo que fala em sua alma. Diga...

— Pois sim... O meu coração diz-me que os seus trabalhos ainda estão no começo...

Simão ouviu-a atentamente e não respondeu. Assombrou-lhe o ânimo esta ideia turva, e afrontosa à singela rapariga: — "Pensará ela em me desviar de Teresa, para se fazer amar?"

Pensava assim quando chegou o ferrador.

— Aqui estou de volta — disse ele com semblante festivo. — Sua mãe mandou-me chamar...

— Já sei... E como soube ela que eu estava aqui?

— Ela sabia que o fidalgo estivera cá: mas cuidava que vossa senhoria já tinha ido para Coimbra. Quem lho disse não sei, nem perguntei; porque a uma pessoa de respeito não se fazem perguntas. Dizia ela que sabia o fim a que o senhor viera esconder-se aqui. Ralhou alguma coisa; mas eu, cá como pude, acomodei-a e não há novidade. Perguntou-me o que estava o menino fazendo aqui depois que a fidalguinha fora para o convento. Disse-lhe que vossa senhoria estava adoentado de uma queda que dera do cavalo abaixo. Tornou ela a perguntar-me se o senhor tinha dinheiro; e eu disse que não sabia. E, vai ela, foi dentro, e voltou daí a pouco com este embrulho, para eu lhe entregar. Aí o tem tal e qual; não sei quanto é.

— E não me escreveu?

— Disse que não podia ir à escrivaninha, porque estava lá o senhor corregedor – respondeu com firmeza mestre João — e também me recomendou que não lhe escrevesse vossa senhoria senão de Coimbra, porque, se seu pai soubesse que o menino cá estava, ia tudo raso lá em casa. Ora aí está.

— E não lhe falou nos criados de Baltasar?

— Nem um pio!... Lá na cidade ninguém já falava nisso hoje.

— E que lhe disse da senhora D. Teresa?

— Nada, senão que ela fora para o convento. Agora deixe-me ir amantar a égua, que está a escorrer em fio. Ó rapariga, traze-me cá a manta.

Enquanto Simão contava onze moedas menos um quartinho, maravilhado da estranha liberalidade, Mariana, abraçando o pai no repartimento vizinho da casa, exclamava:

— Arranjou muito bem a mentira!

— Ó rapariga, quem mentiu foste tu! Aquilo lá o arranjaste tu com essa tua cabecinha! Mas a coisa saiu ao pintar, hein? Ele comeu-a que nem confeitos! Anda lá, que ficaste sem os bezerros, mas lá virá tempo em que ele te dê bois a troco de bezerros.

— Eu não fiz isto por interesse, meu pai... — atalhou ela, ressentida.

— Olha o milagre! Isso sei eu, mas, como diz lá o ditado; quem semeia, colhe.

Mariana quedou pensativa, e dizendo entre si: — Ainda bem que ele não pode pensar de mim o que meu pai pensa. Deus sabe que não tenho esperanças nenhumas interesseiras no que fiz.

Simão chamou o ferrador, e disse-lhe:

— Meu caro João, se eu não tivesse dinheiro, aceitava sem repugnância os seus favores, e creio que vossemecê mos faria sem esperança de ganhar com eles; mas, como recebi esta quantia, há-de consentir que lhe dê parte dela para os meus alimentos. Motivos de gratidão a dividas que se não pagam ainda me ficam muitos para nunca me esquecer de si e da sua boa filha. Tome este dinheiro.

Amor de Perdição (1862)Where stories live. Discover now