Capítulo XII

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O corregedor, nesse mesmo dia, ordenou que se preparassem mulher e filhas para no dia imediato saírem de Viseu com tudo que pudesse ser transportado em cavalgaduras.

Vou descrever a singela e dorida reminiscência duma senhora daquela família, como a tenho em carta recebida há meses:

Já lá vão cinquenta e sete anos, e ainda me lembro, como se fossem ontem passados, os tristes acontecimentos da minha mocidade. Não sei como é que tenho hoje mais clara a memória das coisas da infância. Parece-me que há trinta anos me não lembravam com tantas circunstâncias e pormenores.

Quando a mãe disse a mim e as minhas irmãs que preparássemos os nossos baús, rompemos todas num choro que irritou a ira do pai. As manas, como mais velhas ou mais afeitas ao castigo, calaram-se logo. Eu, porém, que só uma vez, e unicamente por causa de Simão, tinha sido castigada, continuei a chorar, e tive o inocente valor de pedir ao pai que me deixasse ir ver o mano à cadeia antes de sairmos de Viseu.

Então fui castigada pela segunda vez, e asperamente.

O criado que levou o jantar à cadeia voltou com ele, e contou-nos que Simão já tinha alguns móveis no seu quarto, e estava jantando com exterior sossegado. Àquela hora todos os sinos de Viseu estavam dobrando a finados por alma de Baltasar.

Ao pé dele disse o criado que estava uma formosa rapariga de aldeia e coberta de lágrimas. Apontando-a ao criado que a observava, disse Simão: — A minha família é esta.

No dia seguinte, ao romper da manhã, partimos para Vila Real. A mãe chorava sempre; o pai, encolerizado por isso, saiu da liteira em que vinha com ela, fez que eu passasse para o seu lugar, e fez toda a jornada na minha cavalgadura.

Logo que chegamos a Vila Real, eram tão frequentes as desordens em casa, à conta do Simão, que meu pai abandonou a família, e foi sozinho para a quinta de Montezelos. A mãe quis também abandonar-nos e ir para os primos de Lisboa, a fim de solicitar o livramento do mano. Mas o pai, que fizera uma espantosa mudança de gênio, quando tal soube, ameaçou minha mãe de a obrigar judicialmente a não sair da casa de seu marido e filhas.

Escrevia a mãe a Simão, e não recebia resposta. Pensava ela que o filho não respondia: anos depois, vimos entre os papéis de meu pai todas as cartas que ela escrevera. Já se vê que o pai as fazia tirar no correio.

Uma senhora de Viseu escreveu à mãe, louvando-a pelo muito amor e caridade com que ela acudia às necessidades de seu infeliz filho. Esta carta foi-lhe entregue por um almocreve; quando não, teria o destino das outras. Espantou-se minha mãe do conceito em que a tinha a sua amiga, e confessou-lhe que não o tinha socorrido, porque o filho rejeitara o pouco que ela quisera fazer em seu bem. A isto respondeu a senhora de Viseu que uma rapariga, filha dum ferrador, estava vivendo nas vizinhanças da cadeia, e cuidava do preso com abundância e limpeza, e a todos dizia que ali estava por ordem e à custa da senhora D. Rita Preciosa. Acrescentava a amiga de minha mãe que algumas vezes mandara chamar a bela moça, e lhe quisera dar alguns cozinhados mais esquisitos para Simão, os quais ela rejeitava, dizendo que o senhor Simão não aceitava nada.

De tempos a tempos recebíamos estas novas, sempre tristes, porque, na ausência de meu pai, conspiraram, como era de esperar, quase todas as pessoas distintas de Viseu contra o meu desgraçado irmão.

A mãe escrevia aos seus parentes da capital implorando a graça régia para o filho; mas aquelas cartas não saíam do correio, e iam dar todas à mão de meu pai.

E que fazia este, entretanto, na quinta, sem família, sem glória, nem recompensa alguma a tantas faltas? Rodeado de jornaleiros, cultivava aquele grande montado onde ainda hoje, por entre os tojos e urzes, que voltaram com o abandono, se podem ver relíquias de cepas plantadas por ele. A mãe escrevia-lhe lastimando o filho; meu pai apenas respondia que a justiça não era uma brincadeira, e que na Antiguidade os próprios pais condenavam os filhos criminosos.

Amor de Perdição (1862)Where stories live. Discover now