Capítulo XI

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O corregedor acorda com o grande rebuliço que ia na casa, e perguntou à esposa, que ele supunha também desperta na câmara imediata, que bulha era aquela. Como ninguém lhe respondesse, sacudiu freneticamente a campainha, e berrou ao mesmo tempo, aterrado pela hipótese de incêndio na casa. Quando D. Rita acudiu, já ele estava enfiando os calções às avessas.

— Que estrondo é este? Quem é que grita? — exclamou Domingos Botelho.

— Quem grita mais é o senhor — respondeu D. Rita.

— Sou eu?! Mas quem é que chora?

— São suas filhas.

— E por quê? Diga numa palavra.

— Pois sim, direi: o Simão matou um homem.

— Em Coimbra?... E fazem tanta bulha por isso!

— Não foi em Coimbra, foi em Viseu — tornou D. Rita.

— A senhora manga comigo?! Pois o rapaz está em Coimbra, e mata em Viseu! Aí está um caso para que as Ordenações do Reino não providenciaram.

— Parece que brinca, Menezes! Seu filho matou na madrugada de hoje Baltasar Coutinho, sobrinho de Tadeu de Albuquerque.

Domingos Botelho mudou inteiramente de aspecto.

— Foi preso? — perguntou o corregedor.

— Está em casa do juiz de fora.

— Manda-me chamar o meirinho-geral. Sabe como foi e por que foi essa morte?... Mande-me chamar o meirinho, sem demora.

— Por que se não veste o senhor, e vai à casa do juiz?

— Que vou eu fazer à casa do juiz?

— Saber de seu filho como isto foi.

— Se não sou pai; sou corregedor. Não me incumbe a mim interrogá-lo. Senhora D. Rita, eu não quero ouvir choradeiras; diga às meninas que se calem, ou que vão chorar no quintal.

O meirinho, chamado, relatou miudamente o que sabia e disse ter-se verificado que o amor à filha do Albuquerque fora causa daquele desastre.

Domingos Botelho, ouvida a história, disse ao meirinho:

— O juiz de fora que cumpra as leis; se ele não for rigoroso, eu o obrigarei a sê-lo.

Ausente o meirinho, disse D. Rita Preciosa ao marido:

— Que significa esse modo de falar de seu filho?

— Significa que sou corregedor desta comarca, e que não protejo assassinos por ciúmes, e ciúmes da filha dum homem, que eu detesto. Eu antes queria ver mil vezes morto Simão que ligado a essa família. Escrevi-lhe muitas vezes dizendo-lhe que o expulsava de minha casa, se alguém me desse a certeza de que ele tinha correspondência com tal mulher. Não há de querer a senhora que eu vá sacrificar a minha integridade a um filho rebelde, e de mais a mais homicida.

D. Rita, algum tanto por afeto maternal e bastante por espírito de contradição, contendeu largo espaço; mas desistiu, obrigada pela insólita pertinácia e cólera do marido. Tão iracundo e áspero em palavras nunca ela o vira. Quando lhe ele disse: — "Senhora, em coisas de pouca monta o seu domínio era tolerável; em questões de honra, o seu domínio acabou: deixe-me!" — D. Rita, quando tal ouviu, e reparou na fisionomia de Domingos Botelho, sentiu-se mulher, e retirou-se.

A ponto foi isto de entrar o juiz de fora na sala de espera. O corregedor foi recebê-lo, não com o semblante afetuoso de quem vai agradecer a delicadeza e implorar indulgência, senão que, de carrancudo que ia, mais parecera ir ele representar o juiz, por vir naquela visita dar a crer que a balança da justiça na sua mão tremia algumas vezes.

Amor de Perdição (1862)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora