34. seu

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Mia Berner


- Certa vez, sua mãe deitou-se com um homem do subterrâneo.


A voz pigarreada e cansada soou por entre o quarto. Mia estava com ambos os braços levantados, o corpo em formato de cruz e avermelhou-se imediatamente. Olhou para a mulher ajoelhada a frente de si, espetando-lhe mil agulhas no vestido rendado. A reação da garota foi abaixar a cabeça fingindo que nada ouviu, mas as notícias naquele lugar se arrastavam como água. 

Como a água do mar.


- Precisamos mesmo falar sobre isso agora?! - murmurou Mia entre os dentes. Sua voz era mais ríspida do que já fora um ano atrás, e a repulsa perante a Madre Superiora não havia sumido com o tempo. Muitas coisas não haviam sumido.


 - Garota, saia. - A adolescente de cabelos escuros e curtos levantou-se em um salto, com a cabeça sempre baixa. As bochechas vermelhas demonstravam o seu constrangimento, mas tudo o que Mia queria pedir era que ela ficasse, para não precisar ficar sozinha com aquela mulher asquerosa.


Alguns alfinetes ainda espetavam-lhe a cintura, seu peso diminuiu desde que provou o vestido pela primeira vez.


- Sua mãe deitou-se com um homem do subterrâneo-


- Se a senhora veio ao meu encontro para difamar a minha mãe mais do que já difamou a minha vida inteira, irei pedir-lhe que saia. - olhou por cima do ombro, cuspindo as palavras como se fosse gelo. 


- Então irei direto ao ponto, menina Mia. - a idosa entrelaçou as próprias mãos uma na outra, suas rugas estavam mais profundas, deixando seu rosto com uma expressão mais sofrida que severa, não que fosse algo que Mia lamentasse. - Havia um homem em especial, que era a segunda alternativa para levar você, esse homem era o seu pai. 


A loira virou o rosto, os cabelos, já cobrindo os seus seios, serpenteavam com o vento a sua frente. A janela aberta trazia luz e ventania, nada que Mia já não estivesse entediada.


- Eu conheci meu pai. - murmurou. - Brevemente, mas já o vi. Se essa é a sua revelação pode voltar para o lugar de onde veio-


- O nome dele era Kenny. - sua voz alta substituiu o eco baixo de Mia, fazendo-a se sobressaltar. - Kenny Ackerman 


Em um instante, a loira começou a rir. Começou como um murmurio abafado mas terminou-se em uma risada histérica. Os olhos verdes da Madre a olhavam com seriedade enquanto a loira segurava a barriga dolorida, finalmente virou-se totalmente para a idosa.


- Está brincando comigo, sua velha? - perguntou enquanto tentava segurar a risada. - Que tipo de idiota você acha-


- Foi por isso que insisti tanto Mia. - interrompeu. - Foi por isso que lutei tanto contra aquele-


- NÃO OUSE. - gritou Mia. Suas mãos começaram a tremer em ira, fechou os olhos e tentou lentamente normalizar a respiração. - Não ouse falar sobre ele. 


- Você ainda o ama, não é? - disse friamente, os olhos pousados na figura irritada de Berner. - Consigo ver em seus olhos, menina Mia.


- Isso importa? 


A idosa suspirou e sentou-se na cama abarrotada da enfermeira, o perfeito branco cobria os lençóis assim como o simples vestido que usava.


- Você se casa em uma semana, isso realmente importa. 


Fechou a mão esquerda como uma bola. Com força, enfiou a unha longa do dedão na cicatriz esbranquiçada que tomara no lugar de seus dois dedos. A principal intenção do vestido era cobrir a cicatriz monstruosa que havia ficado em seu braço fino. 

Seguia clara e torta por toda extensão de seu braço, algumas outras cicatrizes se estendiam por locais diversos, mas nada comparável aquela linha tortuosa e repulsiva. Tentava cobri-la o máximo possível, não queria recordar de nada que havia passado depois que acordou com aquilo.

Sentiu o sangue escorrer por entre os dedos, mas não acordava. Não era um sonho e ninguém iria acorda-la. Era apenas sua vida.


- Ele está morto. - sussurrou, virando-se novamente para a janela. A mesma que ele havia saído certa vez. E a mesma que ela agora se despedia de suas memórias. - Não me importo quem é meu pai ou não, nada vai mudar. Irei me casar com Halpert, não precisa usar fatos idiotas para me afastar de um cadáver.


Ouviu o suspiro da Madre atrás de si, o ranger da cama a se aliviar do peso tranquilizou Mia, finalmente ela a deixaria em paz. A madeira de seu quarto ressoava com os passos lentos da senhora, que parecia se mover com pesar.


- Teria ficado com ele, mesmo sabendo que ele é seu parente? - perguntou ao pé da porta do minúsculo cômodo. A loira virou seu rosto, recebendo uma rajada de vento atrás de si. Os cabelos longos voavam em seu rosto e se iluminavam com o sol da tarde.


- Sim. - sussurrou. - O teria amado mesmo se fosse meu irmão.


A idosa olhou para os próprios sapatos com os olhos torturados, a boca se envergava triste fazendo seu rosto ficar mais velho ainda. A loira pensou se a mulher estava pedindo algo como pena ou redenção, mas nada disso importava. Virou-se novamente para a janela e desamassou o vestido rendado.



- Assim que sair, chame a garota de volta-



- Ele está vivo, menina Mia. Eles passaram pela muralha Maria.







Comeback | levi ackermanWhere stories live. Discover now