Sorvete, acidentes e silêncios

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Começamos a comer pouco depois daquilo. Luke tinha contado algumas histórias, com meu pai um pouco receoso ou desconfortável ao seu lado, mas não demorou muito pra que a animação das velhas histórias fosse compartilhada, então ele se empolgou e começou a participar. 

- Vocês se conheceram no ensino médio? - Bruno perguntou. 

- Nada disso - Luke assoviou

- Nos conhecíamos desde a quarta ou quinta série - meu pai disse 

- Quarta - Luke concordou - Na verdade, eu me lembro da exata situação em que nos falamos pela primeira vez. Nós dois estávamos tomando sorvete na rua de casa. Morávamos na mesma vizinhança, mas nunca tínhamos realmente conversado. Minha bola de sorvete caiu no chão, e seu pai apareceu do meu lado. Ele disse: "isso é bastante azar. Mas eu pedi do mesmo sabor." E estendeu a casquinha pra mim. 

- E você, como o bom guloso que é, aceitou - meu pai riu. 

- Seria falta de educação recusar, você sabe - o amigo disse - E você disse mais uma coisa depois que aceitei. Você disse: "talvez o azar possa nos trazer algo bom, afinal." 

Luke sorriu docemente pra meu pai, do jeito que dois amigos de longa data se olhavam quando relembravam o motivo por serem amigos. Havia muito carinho no olhar de ambos. 

- E o pirralho estava certo - Luke disse, voltando a olhar pra nós - Depois disso, nunca mais nos largamos. 

O loiro passou o braço pelos ombros de meu pai, que sorria. 

- Imagino que tenha sido difícil se despedir quando papai se mudou - mencionei, e Luke concordou com a cabeça. 

- Realmente foi. Na verdade, lembro de planejarmos uma fuga pra seu pai - disse. 

- Oh, céus, isso aconteceu mesmo - meu pai riu.

- Quando seu pai nos contou o que ia acontecer, ficamos despedaçados e muito irritados, vocês podem imaginar - o homem contou - Então, sempre que nos encontrávamos alguém tinha uma nova proposta de como fazê-lo ficar. Daniel sugeriu que ele fugisse, mas seu pai nunca faria isso, por mais louco que fosse. Tentamos muitas vezes conversar com Dona Cecilia, mas ela não arredou o pé nem um pouquinho. 

- Ela só me contou o motivo de nossa partida anos depois - meu pai disse, olhando para o chão - Disse que papai batia nela. Me lembro de ela estar desesperada para ir embora, mas eu nunca entendi o porquê e ela não me contava direito. O fato de eles estarem se separando já era difícil o bastante, eu ficaria sem meu pai e sem meus amigos, e não aceitei muito bem. 

Papai nunca tinha mencionado isso pra nós. Ele nunca tinha nos dito que vovó tinha se mudado porque apanhava. Por que diabos ele nunca tinha nos contado aquilo? Ela tinha morrido antes que eu nascesse, mas mesmo assim. Ele poderia ter nos dito. 

- Parei de falar com ela, nos afastamos. Ela estava despedaçada, mas eu era teimoso demais. Não acreditei quando me contou sobre meu pai. Ele sempre tinha sido carinhoso e bom comigo. - disse - Na verdade, foi Sara que me deu uma bronca e fez com que eu fosse homem o bastante para escutá-la. 

A menção à minha mãe me arrepiou. 

- Eu nunca vi sua mãe tão brava depois disso, e olha que ela era uma mulher que se impunha com muita facilidade - riu - Ela gritou comigo, disse que se eu soubesse mesmo de qualquer coisa, eu jamais teria virado o rosto pra mamãe. Que ela estava sofrendo muito mais do que eu, e que se eu não me entendesse e a escutasse, ela nunca mais olharia na minha cara. 

Ri fraco. 

Lucas, em algum momento, tinha deitado em mim, entre minhas pernas, e sua cabeça repousava na minha barriga. Eu mexia distraidamente nas suas mechas escuras, e sentia a respiração dele contra mim. 

Clichês, amor e Girl PowerOnde histórias criam vida. Descubra agora