Prólogo

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As Estrelas zelam pelas almas, cuidadosas e tranquilas, costumam escrever com palavras sagradas as vidas de cada indivíduo que cruza por seus olhos. Há certas histórias que as inspiram, outras que as entristecem.

E algumas que as dilaceram, como se todos aqueles pontos brilhantes estivessem sentindo a pressão de ter o coração arrancado e não a alma de quem observavam. Naquele caso, uma alma que acreditava estar sozinha e desamparada.

Destoada do mundo, Lucinda sabia que seu compasso interno havia quebrado. Ela estava sem rumo.

Com aquele bilhete nas mãos — ele nem se dera ao trabalho de lhe dar uma carta —, cedeu ao tremor de seus joelhos e caiu na neve, soluços lhe rasgando a garganta. Os flocos de neve engoliam a caligrafia apressada, tornando-a imperceptível.

No entanto, nem se quisesse Lucinda seria capaz de esquecer o que significavam, uma virada de página abrupta que a empurraram sem aviso prévio. No papel amarelado se lia:

Estou indo atrás do que realmente desejo para mim, irei me casar com Edire em breve, é a ela quem verdadeiramente amo. Não me procure mais.

Tenha uma boa vida,

Sven

O homem que jurava amá-la a havia deixado para trás, junto de todas as promessas que agora não passavam de indícios de uma narrativa mentirosa. Como não pôde perceber que os desvios dele a certos assuntos escondiam algo? Como não notou que quando ele imaginava um futuro, não incluía ela nos planos?

Mesmo sabendo as consequências do envolvimento deles, Sven resolveu não inclui-la. Não incluir o filho deles.

Levando a mão à barriga, Lucinda não conseguiu conter um soluço a mais e cobriu a própria boca, não querendo que o mundo ouvisse seu âmago sucumbir. Nem frio ela sentia, havia saído de casa para correr atrás do homem que amara e parou a meio caminho por saber que não havia o que fazer.

— Me desculpe, pequeno... — foi um sussurro entregue ao vento — Prometo te proteger melhor daqui em diante.

Ou talvez, houvesse o que fazer.

As Estrelas observaram Lucinda se reerguer e seguir em frente em prol da porção de vida que carregava. Ela enxugou o rosto e passou a recolher os cacos das memórias largadas aos poucos.

Seu sonho sempre fora ser mãe. Mesmo que um momento tão aguardado estivesse vindo para a realidade de forma nada esperada como eram nos devaneios de Lucinda, ela encontrou alegria naquela nova perspectiva.

Então, quando o mundo se viu pronto para abraçar aquela existência, entre inspiradas profundas da mãe e incentivos, percebeu-se que havia dois corações onde se acreditava haver apenas um.

— São gêmeos! — anunciou a parteira, um sorriso se formando em seus lábios.

Lucinda sentiu sua alma se agigantar, mesmo diante da dor, ela foi capaz de expressar alegria e suavidade em suas feições. Uma onda de amor se alastrou por seu ser, mas algo parecia fora do lugar.

A mãe se preparou para segurar seus tesouros, mas percebeu que o sorriso no rosto da parteira se transformou em um cenho franzido. A garganta de Lucinda ficou seca ao perceber a peça que faltava: o recinto estava em silêncio. Não havia uma sinfonia de choros, nem mesmo de choramingos.

— O que está acontecendo? — ela tentou perguntar, e já sentia lágrimas despontando dos cantos de seus olhos.

A parteira apenas sacudiu a cabeça, os olhos se fechando em um suspiro de quem, por mais que fossem os anos de experiência, nunca se acostumaria a situações do tipo. Ela mostrou os bebês a Lucinda, e ela os observou como quem observa uma obra de arte.

Era o que eles seriam para sempre em suas lembranças: um momento pintado entre dois extremos, o do profundo amor por perceber que ela ajudara a trazer ao mundo aquelas obras primas e o da consumidora tristeza por notá-los quietos demais, de olhinhos fechados.

Seus filhos não respiravam.

Em consequência, ela também não respirou por muito tempo, nem sabia como continuava de pé, já que nem sentia os próprios pulmões expandirem. Estava em choque, eternizada na percepção de que perdera tudo que tinha.

O silêncio daquele quarto marcou a alma de Lucinda, moldando-a em uma transformação amarga. Ela queria gritar para todos ouvirem sua dor, e achava injusto como o mundo girava e não notava sua decadência.

— O parto e a gravidez de risco são indícios preocupantes. — o médico disse, seu olhar gentil, mas suas palavras trazendo uma realidade difícil. Consultar-se era algo raro, mas depois do caso, a parteira insistira. — Eu temo que a senhora não poderá mais engravidar.

Aquilo partiu o último fio de sustento, e o coração de Lucinda caiu, estilhaçando-se, e só ela ouviu.

Logo ela descobriu que havia mais coisas que caíam sem fazer barulho: a neve sorrateira. Sua essência era composta por uma nevasca, que rugia quietamente, afundando-a de dentro para fora. Ela estava fria como a pele de seus bebês estivera.

Presa em um inverno eterno, Lucinda se via acorrentada àquele silêncio torturante de suas memórias. Mesmo após receber uma oportunidade do Universo, se perder em outra alma e acreditar que havia aprendido a amar novamente, ela estava congelada pelos resquícios sufocantes de sofrimento. Tanto que foi capaz de amaldiçoar outros por isso.

Porém, algo a escapava. Ela nunca esteve sozinha.

As Estrelas a observavam, carinhosas, sabendo que o silêncio é feito de palavras. Palavras guardadas, que podem nos fazer ruir ou prosperar. Palavras não ditas, esculpidas em reflexões.

No entanto, quando entregues ao mundo, essas palavras tem um potencial gigantesco. O silêncio guarda a mudança. Grandes transformações só fazem barulho porque os detalhes que as compõe foram modificados em quietude resguardada.

Assim, o Universo sabia trabalhar com os trejeitos do silêncio. Toda e qualquer alma ao descansar na Aurora Boreal, após festejar e dançar quando as luzes brilhavam, era incentivada a sentir. Naquele espaço seguro, as pessoas eram compelidas a perceberem todo o peso que carregavam em letras maiúsculas e minúsculas, sussurros e gritos.

Tudo isso antes de seguirem em frente, serem capazes de realizar a chamada Travessia. Por várias vezes ao longo das vidas, as almas enfrentavam esse processo.

E Lucinda não ficou de fora.

Suas palavras eram um peso incontido, que se manifestava em seus ombros caídos. Eram como veneno circulante em suas veias.

Mais uma vez, as Estrelas observavam a alma conhecida, zelosas. A alma que acreditava que todas as suas pétalas haviam caído.

 A alma que acreditava que todas as suas pétalas haviam caído

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E esse foi o prólogo! O que acharam? 

Essa história de Cindy está guardada comigo desde os primeiros instantes dela como personagem, e ter colocado ela em palavras me fez uma autora mais feliz XD Como se estivesse compartilhando um segredo que segurei por tempo demais (inclusive, temos mais alguns a vir por aí!)

Torço para que estejam tão empolgados quanto eu, e já adianto que o primeiro capítulo será publicado quarta-feira, dia 25! Então, fiquem atentos porque a história continua, e o título do primeiro capítulo é "Surpresas". 

Vejo vocês lá! 💕

Quando cai a última folha ✓حيث تعيش القصص. اكتشف الآن