Luzes de Alabastro

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          Preservava meu espaço com fidelidade sacra, portanto estendia essa cortesia a outros. Claramente Killian pareceu incomodado. Se não com a pergunta, comigo. Não era insensata em notar o leve desprezo e desconforto que nutria em minha presença.

       O verão em Devonshire tinha por dama de companhia as brumas e mais que depressa os dias se tornaram preguiçosos e convidativos. Não que Irlina tivesse reparado muito, cerrada no interior da mansão. Depois de seis horas, oito dos encadernados azuis ainda esculturavam sua mesa.

         As velas tremulavam e as cigarras faziam serenata do lado de fora quando guiei o carrinho até o escritório.

— O que é isso? — indagou ela.

— Claro que não reconhece: comida de verdade. Ultimamente está só a vinho, pão e mel. E já que não é Nosso Senhor Cristo, coma algo com sustento, e tente dormir. Por favor.

     A baronesa ficou muda por um segundo.

— Preciso terminar as contas!

— Posso ajudar — falei no impulso.

      Irlina estreitava os olhos como uma mãe aborrecida prestes a lançar seu sapato.

— Não faz parte das suas funções.

— Mas quando quer me bajular e manipular, bem que se lembra disso, né?

        Me arrependi no instante seguinte, a forma como fitou os lábios podia bem ser o contrair de um chicote prestes a estalar.

      Contudo, a escocesa bufou, em concordância.

      Sendo franco: um cabelo ruivo cenoura, olhos grandes fazendo vezes de cristal e um sorriso fácil em meio a algumas sardas; não intimidava. A bem da verdade, não davam ouvidos quando não estava empalado alguém com seus olhos de silencio predatório. Os risos foram sendo polidos pelo titulo e obrigações de baronesa, mais reservados com a morte do barão. 

        Porém, quando mordia o riso no canto da bochecha, sabia que era uma raposa divertida. 

        Sentei a mesa a me inteirar dos cálculos enquanto ela beliscava a comida.

        Meia hora depois... Irlina revisava o que havia feito. 

— É um relatório, não precisa de poesia. É insulto que seja bom com letras e números.

— Trabalhava numa tipografia quando criança, acabava lendo de tudo e tínhamos que lidar com muitas moedas e câmbio; agora é só acrescentar alguns zeros.

— E quanto foi tirado para acabar roubando nas vielas de Paris? — Seu tom não era ríspido, cruel, ou mesmo grosseiro. Nem havia nele a pena que teria me ofendido. Ergui os olhos para a baronesa que me estendia uma fatia de sua maçã.

          Voltei depressa aos papéis, engolindo seco. 

— Por que cavoucar histórias velhas, baronesa? — se esquivou, quase sério

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— Por que cavoucar histórias velhas, baronesa? — se esquivou, quase sério.

          Mordi a fruta sustentando o olhar, o silêncio. E Killian se mexeu desconfortável na cadeira.

          Era um homem grande e ágil, de traços que podiam ser considerados rudes, mas seus modos estavam longe disso; tanto que, após considerar, falou:

— Tão direta quanto uma lança, senhora. Pois bem. Morava no sudeste da França quando deixei o emprego para cuidar de minha mãe doente. Não havia muito o que ser feito numa vila pequena nos planaltos franceses, mas meus apelos e planos foram inúteis. Só... perdemos tudo em meio ao avançar da doença. Ela morreu quando tinha treze e fiquei fazendo bicos no vilarejo, um pouco de tudo, e contando com a ajuda de vizinhos. Na época lia contos e ouvia histórias sobre os ladrilhos dourados e fontes que jorravam vinho em Paris. Árvores com frutos de ouro. — Killian parecia querer parar por ai, seu olhar suplicava concluísse em minha mente o resto da história. Mas até meu marido desviava do assunto, então já havia especulado o bastante. — Quando uma carruagem enorme passou pelo vilarejo, vendi histórias para o cocheiro me levar com ele até seu destino. Mas Paris era um chiqueiro.

        O homem fechou o rosto diante do vinho que lhe estendi.

— Em algum momento essa história vai nos levar a um bordel, certo?

       Killian quase engasgou com minha pergunta. Vermelho como tomate assado.

— Isso foi bem, bem antes de conhecer você, Irlina — acrescentou, depressa.

       Gargalhei. Vê-lo embaraçado era impagável.

— Que seja. Ainda não chegamos lá então — mordisquei o biscoito de sobremesa e dessa vez ele aceitou, fugitivo.

— Era inverno quando cheguei e não tinha nada, nem conhecia ninguém. Me perdi do cocheiro e veio a noite, então tudo o que pude fazer foi me encolher numa viela e na manhã seguinte procurar emprego. Mas nada de fontes jorrando vinho, ou ricos homens pomposos; tampouco um trabalho. A fome bateu e não importava aonde fosse ou a quem pedisse, nenhum trabalho em vista. Quando me encolhia nos cantos para fugir do frio, aqueles que passavam xingavam e me chamavam de preguiçoso e inútil. — Vi a mandíbula dele trincar, seu único sinal de raiva enquanto voltava a escrever no papel. — Numa madrugada, o frio cortava como vidro e um homem saindo bêbado de um... estabelecimento duvidoso, deixou cair a carteira e, pela manhã, notei que havia uma generosa quantia. Então sim, roubei na época. Já estava apanhando de qualquer modo; só queria ficar vivo.

— Will disse que você roubou dele.

— Tentei. Tentei. Ele estava com o grupo de colegas estudantes, deixando o lugar. Até onde sei ele podia estar apostando, nada demais. — Estalei com a língua para sua defesa.

— Mas enfim, não imaginava que a bengala do cavalheiro tinha uma lâmina. Nem o quão rápido ele a pressionou contra minha garganta. — Tristeza embotou seu rosto. — Will podia ter me matado ali. Nem posso dizer que teria reclamado. Em vez disso, ele e os amigos me xingaram, então logo empertiguei a revolta.

— Franceses.

— "Se acha que deveria trabalhar, senhor", falei na época, "Concordo. E, como palavras não alimentam, como bem tenho provado". Na época escrevia uns poemas que infelizmente valiam menos que o papel. "Me ofereça um emprego e vou provar que meu mal é fome e não preguiça". — Seu sorriso foi amarelo antes de continuar: — Não achei que ele faria. Ninguém antes tinha feito; ajudado um estranho. No dia seguinte fui até o endereço que ele me deu, mas ninguém atendeu. Então fiquei sentado, meio esperançoso, meio idiota, até vê-lo dias depois. E essa é a história, conhece o resto. Se soubesse que ia lhe abrir o apetite, teria contado antes.

— Adoro histórias. Sobretudo as verdadeiras.

       "Não que me tolere o bastante para tal". Já estava ébria de exaustão. Fazendo as vezes de cortes, lhe enchi a taça, me perguntando se secava sua paciência. Era engraçado. Mas sua história, triste. — Lamento que o mundo seja tão insípido.

— É iluminado, o mundo; mas as pessoas são um prisma diáfano.

— Um brinde a isso! — propus.

— Um brinde ao Will.

        Minha taça estava erguida quando abri a gaveta móvel de mogno e saquei uma caixinha pesada. Passei-a ao valete tinha interrogações nas sobrancelhas.

— 500 libras que lhe são devidas. Embora não creia que baste — esclareci. Killian olhava temeroso de mim para a caixinha. Então, fechou-a e deslizou na minha direção. — Era como um irmão para ele, vive dizendo. É justo sua parcela.

— Ele não deixou isso, senhora. É a renda que oferecia aos filhos em um ano.

— Mesmo? — Dei de ombros. — Loras agora tem uma renda anual de 10 mil libras. 

     Nossas mãos se encontraram sobre a caixa.  

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