Capítulo 8- Um poema para Archie

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- Veronica! Por onde você andou? Te procurei o recreio inteiro! - começa Betty irritada com meu desaparecimento - Seu rosto está vermelho... o que houve? - diz agora com uma feição preocupada.

- Nada... acho que estou resfriada. Na saída eu vou com você até o ponto de ônibus. Tenho algo para te contar e acho que você vai ficar muito feliz - dou um pequeno sorriso triste.

- Eu também tenho algo incrível para te contar, V! - diz entusiasmada.

A fama do professor de português assustava. Diziam que ele era severíssimo. Na certa aquela severidade não devia ser semelhante à do Sr. Honey, o terrível supervisor. O professor seria daqueles exigentes, para quem um erro de concordância era tão grave quanto jogar escada a baixo a cadeira de rodas de uma velhinha paralítica. Com a velhinha em cima.

Verônica estava ao lado de Betty e, fora a vermelhidão, que já desaparecia, era impossível notar qualquer indício de tristeza em sua fisionomia. Ninguém saberia do vulcão que lhe queimava o peito, da vontade de gritar, de procurar alguém com quem pudesse dividir a desolação. Mas ela havia prometido. Era a vela, o cupido do encontro entre o seu grande amor e sua melhor amiga. Mas ninguém saberia nada.

Redação. O forte de Verônica. Se somasse todas as médias de redação de seus oito anos de estudante, ultrapassaria todos os alunos de sua sala. O professor falava sério, mas mansamente. Propôs que todos fizessem um texto, tema livre de aquecimento.

Verônica olhou de lado para Betty e o que viu foi pavor. Ambas sabiam que a tal redação de aquecimento era o modo mais rápido do professor conhecer a escrita de cada aluno. Seria a primeira impressão a que definia o aluno no conceito do professor. Como modificar depois uma primeira impressão desastrosa?

Ela sabia que desastre era a definição adequada para as redações de Betty. Sorriu para dar confiança a amiga e pôs-se a escrever. Em dez minutos, passou a folha de papel para Betty.

- Pegue. Copie com a sua letra - dá um pequeno sorriso para ela.

Bem a redação de Betty, já estava pronta, precisava agora se concentrar na sua. O tema era livre. Mas que outro tema poderia se passar pela cabeça de Verônica, senão a figura de Archie?

"Idiota que fui de pensar que Archie se apaixonaria por mim, tendo a disposição a garota mais perfeita que poderia existir..."

Os pensamentos queimavam na cabeça de Verônica, e não conseguia pensar em nada além disso.

Quando você me beijou...

"Pensar que Archie que Archie poderia ter visto meu olhar, minhas pupilas dilatadas e pensado em como eu sou iludida..."

Quando você me beijou...

"Como se apaixonaria pela simples morena... Ah que piada! Com a perfeição de Betty à frente, com seus olhos verdes, cabelos loiros e belo corpo ao seu alcance..."

Quando você me beijou...

"Burra! O que Archie poderia encontrar em mim, que não acharia em mais ninguém?"

Quando você me beijou...

"O que ele veria? O que todos vêem... apenas mais uma garota nos corredores da escola.

Quando você me beijou...

"Archie..."

Verônica? Quem é Verônica? – o professor tinha dado por encerrada
a redação.

— Sou eu – diz a de cabelos negros se recuperando seus pensamentos levantando levemente a mão e dando um pequeno sorriso. Sabia que estava ferrada mas não podia deixar transparecer.

O professor aproximou-se da menina com uma expressão que, com algum esforço, poderia ser chamada de sorriso.

— Meu colega da oitava série elogiou muito seus textos, Verônica. Gostaria de começar pelo seu.

Fudeu.

A folha de redação passou para as mãos do professor e o arremedo sorriso desapareceu na hora.

— O que é isto? Há apenas a mesma frase escrita várias vezes!

— É um poema concreto, professor. Assim como "Uma pedra é uma pedra", do Carlos Drummond de Andrade. O leitor deve completar o poema de acordo com suas próprias experiências, de acordo com suas lembranças de um beijo de amor... – diz séria, sem deixar transparecer que deixou-se levar por seus pensamentos a ponto de não conseguir pensar em nada além dessa única frase com tanto valor para ela.

Risadinhas discretas fizeram o professor erguer um olhar duro, controlador, para toda a classe.

— Uma explicação hábil. Hábil e espirituosa, Verônica. Mas que não passa de uma saída para desculpar a preguiça. A preguiça e a falta de respeito... E isto? Que marquinha redonda é esta?

— Faz parte do poema, professor. É o cuspe do namorado... – diz irônica.

Desta vez a gargalhada não foi contida e o olhar do professor, surpreso, não
conseguiu transmitir autoridade. Tinha perdido o controle de uma classe pela primeira vez na vida.

— Começamos bem, não é, Srta. Lodge? Mas temos um ano inteiro pela frente. Que tal abrir o boletim com um zero?

Verônica sorriu.

— Vamos ver se esta classe vai me dar trabalho. Você, mocinha, como é o seu nome? – pergunta para a loira ao lado de Verônica.

— Eu? Elizabeth Cooper... – diz a loira após conter o riso pelo susto devido ao chamado do professor

— Posso ver a sua redação, Elizabeth? Hum... A estrutura não está má... a idéia é forte... breve, mas forte... tem um ritmo que... Parece que me informaram errado. Quem sabe escrever nesta classe chama-se Elizabeth...

A redação de Betty ganhou oito. Nove o professor só dava para ele mesmo, e dez, só para Deus.

***

— Verônica! – a loira chama brava pela morena que estava saindo da sala – Eu vou te matar por ter feito isso! – dá um tapa no braço da garota que resmunga e esfrega o local – Sério se eu soubesse que não tinha conseguido terminar a sua eu não aceitaria... você ficou com zero por minha culpa, e eu acabei ganhando seu título de escritora, sua nota e... – falava apressadamente com culpa por ter aceitado a ajuda de sua amiga.

— Calma Betty! – começa a morena pegando as mãos de sua amiga e olhando para seu rosto triste – É para isso que amigos servem! Eu sei que você tem dificuldade em redação... e afinal, logo, logo recupero essa nota. – diz sorrindo e mas não convence sua amiga que continua se sentindo culpada – Vou fazer aquele velho rancoroso me dar um dez, nem que seja tirando sua paciência – consegue tirar um pequeno sorriso da loira.

— Você é incrível, a melhor amiga que alguém poderia ter! – dá um longo abraço e finalmente se permite curtir sua  nota – Uau! Nunca pensei tirar uma nota dessa e ainda por cima é oito vezes maior que a sua! – diz com uma expressão chocada.

— É, acho que além da redação você está precisando de umas aulinhas de matemática – ri e a loira fica confusa – qualquer número vezes zero é zero, B – diz ainda rindo e a loira ri junto passando os braços por cima da mais baixa.

Quem visse as duas, assim abraçadas, teria uma imagem falsa daquela felicidade. Uma das duas mentia ao sorrir, mas mentia como uma especialista.

Os Olhos Errados - VugheadOnde as histórias ganham vida. Descobre agora