a expressão da natureza

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Minha amizade com a literatura e a escrita criativa não vem de passos longínquos nem de eras distantes. Comecei a escrever, se não me falha a memória, há pouco mais de três anos, mas, mesmo assim, nosso laço afetivo, meu e da escrita, é forte e aniquilador como se fossemos amigos desde o meu nascimento.
Em conjunto com ela, a escrita, e com toda a gama de palavras e significados que ela me traz, para que assim eu possa viver o mais puro eu e para que eu consiga me expressar da melhor forma possível, posso tecer uma nova realidade, onírica e libertadora, onde consigo viver os meus sonhos mais cobiçados e onde posso me desvencilhar de todas essas regras e limitações que o mundo real nos dá. São nesses momentos, embebedado por palavras e fantasias, onde eu posso deixar minha dor se diluir e onde posso ver o mais puro êxtase tomar forma dentro de mim. É quando me liberto de toda a rotina que me cerca, de toda a limitação que é posta sobre mim. É aquele momento onde você pode apenas se esquecer das suas tarefas diárias, das tarefas que foram entregues de má vontade a você apenas por ter nascido com essas ou aquelas características. Você nasceu com vagina? Ah, que beleza! Agora você é vista como mulher, terá de usar esse tipo de vestimenta, comportar-se desta forma específica, irá apenas arrumar sua casa, sem nenhum tipo de trabalho profissionalizante, e terá de servir ao seu marido (sim, marido, pois você terá de se casar) por toda sua eternidade. Não é fantástico? E você, portador de pênis, bem vindo ao reino dos homens! Aqui você é obrigado a abandonar seus sonhos precocemente para assim criar uma família e se sustentar através de um trabalho enfadonho e árduo, usando ternos ou roupas fuliginosas, e nunca poderá demonstrar suas amarguras em relação a isto. E se você não se conformar e aceitar cegamente o que te ordenam, se quiser fazer de uma forma diferente, se tornará, para a sociedade, tão sem humanidade e desprezível quanto um papel amassado e jogado em uma lixeira. Uma alma ordinária e um projeto falho, que não merece o mínimo de simpatia e afeto das pessoas, merecendo apenas todo tipo de crueldade que o mundo pode oferecer.
E, sim, você pode discordar de mim, pode discordar de que as regras são lamentáveis e indignas do prestígio que possuem, mas poderia também repensar sobre seus pontos tão egoístas. Claro, de instante as regras podem parecer agradáveis e benéficas para nós — ditam nosso propósito e nos introduzem em um caminho simples e prontamente estabelecido. Mas, em compensação, as regras, ainda por tudo que se possa dizer em favor delas, devastam cruelmente o verdadeiro significado da natureza e sua forma diversa e genuína de expressão. Mas como convencê-los disso explicando-lhes algo tão complexo de uma forma alcançável e concisa? (Na verdade é bem simples). Poderia explicá-los como está o mundo atual, se já não o saibam. Os que tiveram a honra, após um julgamento traumático, de exercerem o título de homens são desencorajados estruturalmente a perseguirem seus sonhos, mantendo-se vagarosos e acomodados em seus tronos, levando uma vida lacônica e lacunosa sabendo que sempre estarão ao alcance do que cobiçam; mas ainda assim coléricos ao não conseguirem desfrutar plenamente de tudo o que vos é tido, devido à alguma força interna que os impede de realizar o ato. (Também pode-se citar o outro lado dessa mesma moeda, o dos que são impedidos exacerbadamente, mais do que qualquer outro, da obtenção da felicidade, sendo esperado deles, se não exigido, tão-somente a grande revolta selvagem, a brutalidade máscula tornada intrínseca, mais precisamente injetada pela sociedade, nesses corpos; e quando se é externalizada essa brutalidade é também quando ela se torna objeto de repúdio, sendo usada como bode expiatório para o ódio encapsulado contra esse povo pelas almas corrompidas do mundo, o fator para os encarcerarem e livrarem-se deles o quanto antes: falo dos corpos tidos como subalternos, como os negros e indígenas). Por outro lado, as mulheres, as que não se nomeiam mas sim são lançados a este precipício sem decisão prévia, elas fruem com ardência do que ocasionalmente vêm aos seus lábios, carecidas por algo que as inunde; sem o entendimento de que tudo isto é apenas uma distração que oculta o fato de que estas mesmas são desprezíveis aos olhos da sociedade. Os outros, os espíritos fluidos como a água de um riacho ou os indizíveis pela magnitude florestal de suas naturezas — esses são levados ainda mais à beira desse precipício (se já não foram impelidos de lá) e vivem sem descobrir o que é gozar dos frutos que a vida vos oferece, pois os demais se sentem ameaçados ao verem-se perante a seres tão grandiosos e desaprovam em ignorância sua bravura de ir em detrimento às leis do mundo obsoleto. Dizem que estes sofrem porque fazem a escolha de sofrer. Ah!, meu amado Deus… se eu ao menos pudesse escolher ser o que não sou para então não ter de passar por todo este tormento. — Mas não posso fazê-lo: jurei de dedinho a mim mesmo que nunca negaria o que verdadeiramente sou.
Mas o que sou na realidade do mundo? e como explicá-lo a vós? O que posso dizer é que tudo o que existe foi forjado por mãos maculadas do sangue individual e coletivo. E cravaram mitos em nossas cabeças como quando acreditávamos nas histórias sobrenaturais de nossos avôs. Pois, da mesma forma que a escrita foi criada para um propósito que possa beneficiar e facilitar a nossa maneira de viver, os gêneros masculino e feminino também foram. E, exatamente como a escrita, como falei em minha outra produção textual, esses estereótipos e simplificações não dissecam nossa complexa composição mental e não são fiéis à nossa natureza. Somos humanos, multifacetados, imensuráveis (como todos sabem que meu nariz é alongado e o seu pode ser um pontinho delicado escondido na face, que meus olhos são castanhos e penugentos e os seus podem ser oceânicos e carecidos de pêlos, que meu corpo é um tanto saliente e o seu pode ser enxuto e curvilíneo, e que desta mesma forma difusa é tudo na Natureza) e não conseguimos nos conter nas pequenas caixas que nos colocam. Então, por essa razão, devemos ampliar a nossa visão sobre identidade e papel de gênero na sociedade, para que possamos fugir do autoritarismo que está assaz impregnado nesse mundo.
Mas parece ser complicado para as pessoas aceitar essa verdade, e ao mesmo tempo toda a sociedade usa dessas mesmas afirmativas para enganar-nos. Sempre é assim: eles vendem-nos a ideia de que podemos ser quem quisermos, de que possuímos essa tal liberdade, mas, quando usufruímos dela, nos tornamos seres condenáveis e deploráveis. E eu não consigo compreender isto, de forma alguma. Por isso prefiro, diante de todo o prazer que o mundo possa me oferecer, a minha caneta e meu papel, que é onde posso ser quem verdadeiramente sou, nu sob a luz, sem medo de ser julgado ou condenado por meus atos e sentimentos naturais e humanos.

campos de lamúriaWhere stories live. Discover now