A Liberdade

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Se há algo de interessante que me aconteceu durante essa semana, esses meses ou esses anos? A resposta mais franca é não. Não, pois minha vida deixou de ser poética há tempos. E agora, além de não ser poética, é angustiantemente prosaica. E o fato de que minhas experiências humanas já deixaram de ser experiências e passaram a ser rotinas incessantes e maçantes é o principal ponto nisso. Crescer em um mundo regido por regras não nos dá espaço para desenvolvermos nossa humanidade corretamente e nem para que possamos criar momentos especiais, gratificantes e puramente humanos. Regras são apenas uma banalidade exaustiva. Minha vida é uma lamúria e não há nada que eu possa fazer para encerrar esse sentimento, a não ser que eu tenha minha liberdade de volta.
Por isso me encontro tão absorto em meus pensamentos, romantizando caminhos de fuga dessa situação opressiva. E nesse meio tempo, encontrei duas maneiras de escapar das convenções do mundo. Dois extremos que podem parecer desconexos, mas que no fundo possuem a mesma essência.
Eu me imagino voltando à infância, pois é, creio eu, o momento de maior pureza e encantamento pelo mundo, o momento onde ainda não fomos afetados pela barbárie e melancolia que há nele. Eu sei disso, mesmo que não consiga me recordar com exatidão de minha própria infância, pois cresci vendo e analisando cada passo de meu irmão pequeno. Seu balbucio, suas falhas tentativas de caminhar sozinho, a sua curiosidade ingênua, a rotina agitada, mas alegre e agradável, que o seu nascimento trouxe para mim e para meus pais. E como são doces essas recordações!
Lembro-me de quando ele deu seus primeiros passos após tantas tentativas, de como a falta de equilíbrio e a imprevisibilidade daquela situação lhe proporcionaram uma felicidade extremamente contagiante. Ele não parecia sentir nem sequer uma gota de medo ao perceber que poderia cair e se machucar a qualquer momento. Na verdade, sentia êxtase. E era hilário! Hilário a maneira como não só meu irmão, mas todas as crianças possuem uma fiel inclinação para as proezas mais inimagináveis da vida, o quanto elas abraçam essa imprevisibilidade e não se importam se aquelas situações as colocarão em perigo ou em risco de morte. Ou talvez estejam tão cegas pelo brilho do inédito que nem ao menos conseguem imaginar o que seja esse tal "perigo". Apenas sentem uma enorme vontade de sentir, de saltar, de correr, não se importando com onde querem chegar, se chegarão até lá, ou, se já chegaram, apenas desejam sentir a brisa do vento no rosto mais uma vez.
São espíritos libertinos. Esse é o termo que eu desenvolvi, que é, para mim, o que mais consegue expressar em palavras a indomabilidade e liberdade das crianças. E que sorte a delas por ter essa liberdade, uma liberdade que não é mal-vista, que não se é julgada ou apedrejada pelos demais. Uma liberdade de expressão que só é tida a nós por um curto período de tempo, apenas por um interlúdio, quando ainda não compreendemos as limitações do mundo. Claro, pois, se crianças não sabem nem ao menos seus próprios nomes com a minúcia de cada pronúncia, se elas nem ao menos compreendem o mundo em sua plenitude, como saberiam da existência das limitações, como iriam se curvar diante das regras? Por isso este é um momento tão divino e especial em nossa época de crescimento: é quando essa prisão ainda não ganhou força e quando a vida ainda não pesou sua impiedosa mão sobre nós. É quando podemos ser onipotentes como deuses. É quando podemos contemplar a vastidão imensurável do mundo ao nosso redor em seus mínimos detalhes.
Só de imaginar-me vivendo no lugar dessas almas regidas por Deus, já me vem ao peito uma imensa sensação de calmaria. Não sente o mesmo? Não desejas tão intensamente quanto eu possuir uma liberdade como essa? Pense. Ah, meu Deus, e veja como seria magnífico!
Mas então crescemos. O encantamento que antes tínhamos pelo mundo passa a não mais existir no momento em que começamos a sentir o peso da vida sobre nós. Somos abruptamente virados de ponta-cabeça, vamos de uma coisa a outra totalmente diferente em um piscar de olhos, e este processo se torna ainda mais aflitivo quando sabemos que não podemos fazer nada para impedi-lo. Percebemos que o mais prudente é nos conformarmos com toda essa ordem que esse mundo restritivo impõe sobre nós, ou seremos exilados dele. Então aos poucos vamos nos tornando rígidos com nós mesmos, carrancudos e vazios. A liberdade da infância se torna distante, tão inalcançável que até a memória que tínhamos de como era senti-la começa a se dissipar em nossas mãos.
Mas, de repente, quando aguentamos até o fim dessa batalha árdua, quando tudo se torna decrépito e empoeirado, encontramos uma luz no fim do túnel, tão vívida e cheia de esperança que chega a parecer uma abstração. Quando nos tornamos idosos, deixamos de ser apenas mais uma engrenagem que alimenta essa máquina monumental que é a sociedade. E, talvez não exatamente como era, levando em conta nossa condição física, mas, ainda assim, para trazer um alívio reconfortante, conseguimos nossa liberdade de volta. Já não possuímos mais a disposição necessária para sermos úteis no mundo. Tornamo-nos fracos e irrelevantes para isso, e nada do que fazemos contribui ou afeta diretamente a vida dos demais a nossa volta, então o universo passa a entender nossa incapacidade e, com sorte e um pouco de magia, se já não estivermos demasiado incapazes, ele nos dá a chance de finalmente escaparmos dessa prisão que por muito tempo nos assombrou. É quando finalmente podemos viver a vida livremente e em paz de espírito: possuímos o tempo e o dinheiro suficientes para isto, e, para tornar tudo ainda mais aprazível, também ganhamos o amor mais puro e diligente de nossos familiares e amigos, que cuidarão de nossos corações debilitados exatamente com ele. É transcendental e onírico, e é o que pode nos acontecer de mais fantástico nesse último instante aqui na terra.
Mas, então… Você pode se perguntar como sei de tudo isso, considerando o fato de que sou muito jovem. A resposta é que eu sei dessa história por conhecer a melancólica e bárbara vida de meu avô. Eu não a acompanhei fielmente em todo o seu desenrolar, pois, posso dizer, com ressentimento, que fui um tanto ausente nela; mas presenciei momentos cruciais e que dissecavam boa parte de sua trajetória. E então, o que posso dizer sobre meu avô? Para falar a verdade, eu não sei. Acho que posso dizer que ele teve dias conturbados durante todo seu tempo aqui. Posso até alegar que, após ver tanta crueldade diante de seus olhos, até ele passou a ser cruel consigo mesmo e com as pessoas que o rodeavam. Mas, se formos parar para analisar todo o contexto, esse era um ponto inevitável e que fugia de seu controle, por isto não o culpo, mesmo que ele possa não ter sido o melhor marido, pai, ou avô. Mas, mesmo com tudo isso contra ele, com a ajuda da magia da velhice, a magia que tanto descrevo neste texto, a magia da liberdade e do amor, a situação conseguiu ser revertida, e ele conseguiu a clemência de todos quando atingiu seu ato final. Foi muito bem cuidado. Creio que não como ele desejava, mas foi. Eu também não era tão próximo dele, não conhecia profundamente seus desejos e suas angústias, mas eu espero que ele tenha vivido bons momentos antes de sua partida. Que Deus o tenha afetuosamente em seus braços. Descanse em paz, vovô.
E agora volto ao meu status quo, e percebo o quanto é fácil nos perdermos em nossas fantasias, o quanto é fácil idealizarmos caminhos de escapatória da prisão ou dos empecilhos que nos impedem de alcançar nossos sonhos mais cobiçados. A mente humana é fascinante nesse processo de evitar a dor e buscar o prazer. Mas uma hora a realidade bate à porta, e então nos entristecemos com o que nos espera atrás dela. Mas o que é isso que tanto me aflige? E por que me aflige, se sou tão jovial e brilhante e cheio de uma graça angelical como agora nesse palco teatral? Por que todo esse descontentamento com a realidade? Talvez sejam algumas de suas perguntas. Mas então eu revido com outra pergunta: como não sentir descontentamento com a realidade, quando vemos nossos maiores e mais sagrados bens sendo tomados de nossas mãos? quando percebemos a nossa vida de meros adolescentes dividida ao meio, enquanto nós passamos por um interlúdio silencioso e inquietante entre a infância e a vida adulta, onde já perdemos a liberdade da infância, mas ainda não nos habituamos completamente com a dureza da vida adulta, onde nos sentimos hesitantes, perdidos e desamparados? Como não sentir tudo isso quando nos tomam à força tudo que tínhamos?
Eu sinto que aqui, onde me encontro, tenho a capacidade de agir de apenas duas maneiras: ou eu me curvo todo educado para as regras que as elites nos estabeleceram, ou eu me rebelo contra tudo isto e faço de minha vida a mais divergente possível. Mas eu sinto que, mesmo escolhendo a segunda opção, que é obviamente a mais lógica e de acordo com todo o pensamento que trabalhei aqui, ainda assim me encontraria em uma barreira impenetrável em algum momento, um obstáculo que não me deixaria prosseguir. Manter uma vida em meus mais excêntricos ideais não me soa promissor e me parece descomunalmente custoso, então sinto que seja, para a minha enorme infelicidade, inevitável viver uma vida da forma deles, da forma como eles disseram que deveria ser vivida. Se não for assim, eu vou tentar, tentar e tentar, até que eu não suporte mais carregar esse peso sobre minhas costas, até que minha alma já esteja em mil pedaços, até que eu sucumba e finalmente diga o que todos querem que eu diga: vocês venceram. Pois se é o que eles querem, é o que eles sempre terão. E não há objeções a fazer em relação a isso. O nosso dever é estarmos calados. E até que eu chegue em minha velhice, sonharei com o tempo onde fui pequeno e livre, pois esta é a única coisa que me manterá vivo nesse meio-tempo.

campos de lamúriaWhere stories live. Discover now