Animismo

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Temos o hábito de achar que uma coisa é estritamente uma coisa. Nada não se resume a nada. Alguma coisa não se resume a alguma coisa; sempre há o despercebido, o que está oculto detrás da cortina, sempre há os seus constituintes, as partes que se agrupam em nome de algo maior. Não é só comer, é dialogar com seus pais para cada um pôr-se à par de suas vidas, é analisar o tragar barulhento e imundo do seu irmão mais velho, é deleitar-se do sabor agradável da comida que sua mãe fez durante cada uma das insignificantes mordidas. Não é só escrever, é ter de pesquisar os sinônimos de uma certa palavra pois a forma como esta veio até você foi de uma dissonância e vulgaridade sem igual, é distrair-se com o tagarelar inoportuno de seu irmão mais novo ou de sua mãe e depois perceber o quanto isto é amável por saber que, mesmo que você tenha esquecido de si mesmo, eles não lhe esquecerão jamais. Não é só a realidade, é mais precisamente sua tridimensionalidade universal, a textura ríspida ou sedosa de certos objetos, a fragilidade e a austeridade de outros, a mutabilidade do pão no forno, a picância e a doçura de certos alimentos, a solidez, a opacidade, a permeabilidade e a translucidez de certas matérias, a escuridão, com suas sombras sobrepondo sombras e o degradê de uma sombra clara à outra mais escura, a penumbra do instante mínimo, e a fluorescência que vem com o reflexo de luzes multicoloridas que se é despejado sobre uma superfície, o feixe e os halos de luz do mesmo que incendeiam a visão, a frigidez e a umidade da chuva larga, a quentura e a liquefação dos dias de sol abrasante, a linguagem gestual e verbal que dão sentido a tudo, a humanidade e a fauna e flora tão incompreensíveis, distinguíveis entre si e ao mesmo tempo tão semelhantes, como a semelhança entre as veias túrgidas e encarnadas dos olhos e os raios que caem dos céus, as linhas da palma das mãos e as dobras das folhas, a íris dos olhos e as nebulosas iridescentes do universo, a química vertida do mundo ao cérebro que fazem todas as coisas existirem em um transe constante.
Quando anoitece, dantes tendo uma vida tão maçante, eu me desfolho inteiro durante meu outono-inverno gélido e silencioso, como uma imaculada margarida em um campo florido que tem a despreocupação de fechar os olhos pois sabe que suas irmãs de pétalas e caules estão ao seu lado caso o perigoso seja iminente; e agora em meu leito cometo a proeza de me deitar todo resplandecente e inteiro, tão tagarela inventando conversas até mesmo com a fronha de cetim espumosa na qual escoro a cabeça, como um amigo imaginário, mas este sendo mais real que a certeza da vida, ela arfando como um pulmão vivente e vivo que urge por uma outra vida tão larga que a complete, sendo eu e ela - e quaisquer outros objetos inanimados e formas de existência que queiram participar da dança - dois pulmões arfantes e barulhentos em um peito oco, ou vários pulmões que preenchem o corpo sem órgãos, pois não se precisa de mais nada quando se tem o sopro, ah, o sopro do qual todos anseiam. Por que a vida é tão vívida quando não se é para ser vivida? Por que é tão intenso meu contato com a vida, a mais verdadeira, quando de fato é o momento em que eu mais preciso me distanciar? É que o barulho do ventilador é alto e claro e deixa-me hipnotizado, e os lençóis lanosos são demais carinhosos quando tocam meus pêlos, e as paredes são um céu infinito e eu uma pomba mensageira que tem que atravessá-lo sem que caia no grandioso abismo niilista. E a sensação é ademais aprazível e radiante e cheia de suculência, e eu hei de ficar acordado, não posso dormir e deixar que essa sensação se vá para longe de mim! Por que me apego tanto a coisas imateriais e desprezíveis? Por eu ser desprezível da mesma maneira, ou por eu ansiar ser tão inócua e pura e intocável como essas mesmas coisas?
Quando noto que uma almofada de meu sofá está murcha e solitária ao seu encosto, gosto de pegar outra de sua espécie e ombreá-la ao seu conjunto; quando deito em meu leito à noite, dou as saudações desde os travesseiros e os lençóis sedosos à persiana e os pés da cama. É que eu tenho a inclinação por dar à luz os inanimados: viemos das mesmas partículas bruxuleantes daquela explosão há muitos milênios, e acredito que por isso possuímos uma conexão espiritual. Eu não sei o que falo. Não mesmo. Só falo abstrações, mas isto é o que se ganha quando se vive em demasia. Ou talvez, agora que abro a boca em um bocejo, seja sono. Não consigo distinguir.
Eu estou exausto e ocioso, neurônios indolentes que se apagam lentamente, essa lamparina de lume tênue que se vai sob qualquer sopro tido em suspiros. Mas aprendi que não posso parar de escrever jamais: o dever me chama. Não há desperdício no que escrevo. Todo o mel de minhas veias que se rompem e explodem e jorram fontes por entre meus dedos a caminho do toque de minhas palavras foi feito por abelhas determinadas e é precioso. Poesia corre por nossos corpos, é isto o que faz o nosso coração pulsar. Devido a isso é que falo tantas tolices: há beleza aqui, ali, em tudo. Se tu achas os raios do sol poente que submergem a cidade em laranja estival belos ao ponto de deixar seus olhos úmidos, mesmo que pareça uma futilidade fazê-lo, conte isto a alguém da forma mais poética que você puder, nunca o guarde para si, talvez tu faças a vida de alguém mais leve com sua modéstia de achar graça em coisas singelas. Porque, para que existiriam milhões e milhões de palavras, para que serviriam a voz e o dom dos gestos se não para expressar-nos da forma mais precisa possível? Então, vá à capelinha de seu bairro e entoe o canto gregoriano através das janelas, faça de sua voz um coral de anjos e uma filarmônica completa, cante para o seu Deus e para mais ninguém, e assim cantará para todo o mundo de uma só vez. Lá-lá-lá-lá! Porque esta é a vida.
Por isso aqui descrevo uma vivência exímia minha: Um dia desses, sentei-me no chão da sala e observei, sobre o sofá, uma minúscula formiga, com seus formatos ovais e seu exoesqueleto reluzente de quitina, um par de antenas e ausência de presas, delicada ao ponto de ser esmagada apenas com a força - digo por dizer: força que não tem o porte para ser chamada de força, esvoaçante como ela é - da tez dos dedos. Ela, a formiga, carregava uma migalha de pão, aparentemente perdida de seu lar, toda sozinha mas valente ante sua pequenez (claro: formigas suportam vinte vezes seus próprios pesos, como não suportariam a solitude?), e enfim compreendi como o mundo é vasto, como nada se resume a mim, como há tantas vidas extraordinárias para se apreciar, para com as quais se surpreender ante seus mínimos detalhes, para tão-somente amar e amar e amar! Não é sobre Deus, é sobre quem o criou. É sobre as notas de rodapé que nós tanto teimamos em tratar com indiferença. O mundo é colossal e é aborrecedor saber que nunca desvendaremos ele por completo. E é ainda mais decepcionante saber que nem ao menos tentamos fazer o mínimo disso. Agora eu faço. Pois: que descoberta pungente!

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