A insuficiência objetiva do amor

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Os mundos físico e psicológico ainda são de causar-me uma perturbação inconsolável, uma repugnância inclemente que não medem espaço nem tempo antes de se manifestarem, desolando quaisquer ambientes não importa o quão sossegados estes estivessem. Amar é um emaranhado de linhas, um quebra cabeça indecifrável, difícil de “pegar o jeito da coisa”. Amar é apreciar, é contemplar, é doar sua preciosa atenção a algo que parece tão mais precioso e incandescente que chega a romper as barreiras do ego. Mas esse ato da contemplação, do amor incomensurável e dilatado que se alarga pelas córneas e consome a mente, ele causa-me uma certa angustiante cócega na alma, e não posso permitir que ele continue a me ferir, fazendo leves cortes oblíquos em meu estômago, matando-me aos poucos, fervendo meus olhos em caldeirões de bruxas, passando noites em claridade cegante, um sentimento suicida que mata a alma do seu próprio transmissor; isto tudo pois a alma é o meu único constituinte — vivo de peito aberto — e não posso perdê-la jamais. É muito cansativo o fato de que o amor tem-se que ser demonstrado de maneira objetiva, um bloco de gelo sólido, austero e que teima em não se derreter, que ele seja feito unicamente de palavras e de gestos que só tangem a superfície da pele, de uma forma nada autêntica, nada revolucionária ou especial, porque da mesma forma que o amor é a violência, que vem com palavras, estas ríspidas, toques em forma de bofetadas e socos que fazem o possível, ainda que seja impossível, para roçar a alma da pessoa amada. (Pessoa amada pois só se briga realmente com quem se ama, o amor que traz a preocupação em forma de ódio). O que eu tenho é pouco para mim, mas não posso dizer o que quero pois o que quero não tem nome. Nunca fora inventada uma forma de amor anômala, deformada, alucinógena, incognoscível, com membros alienígenas abstratos e irracionais que se desdobram no ar ao alcance do toque de não sei o quê. Eu gostaria de fazer diferente. Eu gostaria de me liquefazer em água, ser uma criatura viscosa e disforme, mutável mas nunca abalável, nunca separável de mim mesma, inquieta mas com a calma do soar de meu marulho de chocar-se com as rochas, capaz de me habituar às proporções de qualquer corpo em que eu seja vertida, ser ingerida em goles desesperados e deleitosos de impetuosa paixão, com minha água gélida fazer calafrios no corpo, eriçar os pêlos, atravessar as veias e os órgãos e me adentrar profundamente em seus formatos esguios, tornar-me verdadeiramente a outra pessoa a quem entrego meu amor. Ou que meu amante fosse uma formosa camélia embebida em óleo de amêndoas, suas pétalas semelhantes a mãos estendidas em forma de concha como que segurando algo nos dedos delgados, como que eu segurando a própria camélia diligentemente em minhas mãos, com as gotas oleosas preenchendo a palma aberta, seu perfume como flutuantes ondas acústicas de um trompete, anunciando a sua solene chegada, meu corpo se inebriando da doçura do seu odor sedutor, desmoronando aos pés, resvalando no chão ensopado, contraindo as pernas agulhadas que ocultam os membros altivos e que formam curvas insolentes e pitorescas, a pintura de um nu frontal, um sonho febril se esvaindo e levando o próprio sonhador consigo — eu morro, e morro feliz pois amei, amei sem qualquer outro sentimento que interrompesse esse amor, amei imaculado e clérigo e devoto, amei!.
Focar a atenção em algo e nunca tornar-se este algo — para quê? Eu detesto o ato sôfrego de escrever. Se eu pudesse jamais escreveria. Eu só escrevo, de uma forma rasa e desleal e distante ao que sinto, para que eu rememore, venturoso, de que um dia vivi tal experiência química, neurônios mandando choques de raios a neurônios, de ser atingido por um alumbramento ou serendipidade. Eu sou uma criatura inefável, sou inumano, feérico, etéreo, sou demais para esse mundo, e sofro por tais heresias universais que cometo. Mas fazer o quê?

campos de lamúriaWhere stories live. Discover now