★ 𝟬𝟬𝟮 » Falha divina

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"A crença em uma fonte sobrenatural do mal não é necessária. O homem, por si só, é capaz de toda maldade."

Joseph Conrad

MONTAUK, NOVA IORQUE - EUA
24.11.2020 - 17:48 PM (Agora)

Um calafrio percorre todo meu corpo, acompanhado por um espasmo que me faz acidentalmente chutar a janela ao acordar no banco de trás. A sola do coturno fica marcada no vidro, logo de frente para a face distorcida de um morto. Ele mordisca o ar, trincando os dentes enquanto baba contra a porta do carro, grunhindo incessantemente por atenção e implorando por um pedaço de carne. Minha respiração expulsa uma fumaça de vapor. O céu estava cinza, o inverno se aproximava de forma cruel. Me preocupar com comida e gasolina agora não era a única questão. Precisava de um abrigo fixo para quando a neve chegasse, e um estoque de lenha. Qualquer veículo se tornaria inútil com as estradas impedidas, e morrer por hipotermia não era uma opção. Pulei para o banco da frente, tomando o posto do motorista. No banco do passageiro ao lado, tudo o que me restava estava jogado: uma mochila com poucas tralhas, e um machado de incêndio com o cabo manchado por sangue e sua lâmina sem fio.

Levei as duas mãos até o volante e espaireci por um instante. Os nós dos dedos estavam feridos ─ resultado de uma troca de socos recente com um saqueador que teria tentado levar meu carro ─. As luzes no painel pareciam normais, ainda me restavam a reserva de gasolina no tanque e um galão de cinco litros com menos da metade no porta malas. Me inclinei para trás brevemente, puxando um mapa de papel aberto e rabiscado com caneta vermelha, demarcando todos os lugares da cidade por onde já teria passado e revistado. Não me restava nada em Montauk, planejava seguir até a capital e de lá para qualquer outro lugar. Não acreditava que existissem lugares seguros mais, mesmo que algumas transmissões de rádio desconhecidas dissessem o contrário. Soavam como armadilhas para pessoas ingênuas.

Girei a chave no painel. O motor liga, mas falha. Uma segunda vez, e a ignição traz um estalo estrondoso que ecoa pela rua. Uma nuvem de fumaça começa a subir através das brechas do capô. Não tinha ideia de qual seria o problema da vez, mas presumi que novamente fosse o maldito radiador.

─ Inferno... ─ Sussurrei baixinho, tentando raciocinar o que poderia fazer. Logo, a realidade me atinge trazendo uma onda de raiva e frustração ─ INFERNO! ─ Gritei batendo ambos os punhos fechados contra o volante, e inevitavelmente a buzina do veículo soa. O infectado que antes se debatia contra a porta de trás se aproxima. Seus grunhidos repugnantes voltam a chamar minha atenção ─ vai se fuder você também ─ Resmunguei como se aquele ser fosse proveniente de algum raciocínio.

Passei para o banco do motorista e peguei minha mochila, passando os braços pelas alças. Agarrei o machado e tentei abrir a porta. Emperrada. Às vezes, acreditava que alguns dias estavam predestinados a fazer tudo dar errado. Chacoalhei o trinco e chutei a peça de plástico banhada em tinta de cor metálica, que se solta sobre a calçada quando a porta abre bruscamente.

─ Caçamba... ─ Balbuciei enquanto ajustava a pegada no cabo do machado.

Dei meia volta no veículo, e com um golpe limpo o crânio do doente é dividido em dois. A arma era consideravelmente pesada, e por isso dedicava algumas horas de todos os meus dias ao exercício físico. Tinha músculos definidos, acabei chegando a um estado razoavelmente forte demais para uma mulher sem instrução para tal objetivo. Tudo era questão de força física agora, o tempo todo. Recuei dois passos para trás com uma feição de nojo ao sentir os respingos de sangue coagulado espirrarem em meu moletom. Apesar do conceito de morte ser algo "comum" ultimamente, ainda não tinha nenhuma familiaridade com sangue. Sangue apodrecido conseguia ser ainda mais repulsivo.

Meat Is Murder: InterritusWhere stories live. Discover now