Capítulo 2

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Orm

O meu clarinete nada mais era do que apenas um totem para minha casa abandonada, depois do funeral de minha esposa. Aquela com que assassinei, anos atrás.

Peguei do instrumento musical, sentei sobre aquela cadeira de tronco feita pela minha filha, e soprei na boquilha.

Era fraco, desajeitado, eu errava os botões e formava uma melodia melindrosa. Eu perdi o talento. A culpa me entregou a falta de costume. E agora, repouso em silêncio sobre minha casa.

Noite. Na festa da glória, Deus me mandou, e eu, um leal e cínico general da guerra, aceitei. Minha esposa morreu na hora. Mas nada disse e nada chorou. Abaixou a cabeça quando recebeu o corte na nuca.

Mas não minha filha.

Era a mais rica das casas, nos maiores barrancos de Fiei. E sobre os longos e resistentes suportes de pedra azul que segurava o teto, eu chorava sobre o vestido dela, da única mulher que me amou.

O clarinete ali à mesa, na cozinha enfeitada de laranja e amarelo, e eu apoiado sobre a veste azulada, suspirei em silêncio, o peso deste ressentimento.

Por que Deus me pediu para tal coisa, afinal? Um soldado perfeito? O que isso tem haver com a morte delas?!

De meus olhos vermelhos do choro, e o cabelo desgrenhado liso ruivo sobre o couro, eu estava neste luto hipócrita por dias.

Mesmo meu desempenho decaiu, e nada mais sou do que um general fálico, e repleto de emoções.

O que faço? Aquelas outras mulheres nada mais eram que ilusões, e no final, o que me resta é a fama sangrenta desta verdade.

Uma batida à minha porta me fez voltar a mim mesmo. Levantei em alto tom, peguei o elmo negro colocado sobre um cabide ao lado da porta, e escondi de meu rosto tristonho para atender ao chamado.

Um mensageiro, jovem e faceiro, veio de cabeça levantada e em olhos brilhantes a minha frente.

— General Orm. Tenho uma mensagem para você. — ele contou, e o fiz confortável à casa.

Sumi com o vestido da mesa e lhe servi de café branco. Depois, me juntei a ele, silencioso para não apresentar minha voz trêmula.

Gesticulei minha mão para ele continuar, enfim, ainda com o elmo.

— Vosso Deus não me disse nada — de sua bolsilha, retirou um pergaminho avermelhado — E quis sua presença sobre tal assunto. Em Míuf.

Peguei a mensagem em papel metálico, e fitei com dificuldade as palavras pequenas e rebuscadas do mantra de Deus sobre os feixes do capacete.

Míuf. A glória de nosso Deus, fez-lo flutuar para comemorar o acordo aos outros Deuses, do resto do aglomerado.

— Uhum — eu confirmei, fitando o ruivo de cólera encaracolada — Obrigado.

Abri a porta para o menino, e nos despedimos com o símbolo dos três dedos para o avante, por respeito ao Deus.

Pouco depois, fui logo eu em retirada de meu casarão.

Toda Fiei, a capital oficial da Courta, amada milícia com que entreguei tudo de corpo e alma, era como um imenso poço cada vez mais protuberante.

As casas, lá no final do buraco feito pelo próprio Deus, são os soldados inferiores que nada mais podem se considerar como a bucha de canhão. E eu, quase à saída de Fiel por meia duzia de passos, sou o topo do topo.

Minha cabeça pendurada na pedra castanha para se moldar um parapeito alto, tinha lá uma atenção especial mesmo pelos melhores arquitetos. E da passarela conectada por todas as casas, de uma joia verde brilhante e fácil acesso sobre as minas, fazia da visão confusa sobre a centena de pontes, mesmo bonito aos nossos olhos.

Da passarela que sempre subia, fui em direção do castelo de Deus, que flutuava ainda acima do fim da cidade, e tinha outras 10 pontes de mesma cor esmeralda que vinha por todas as largas portas.

Ainda sobre a minha subida, fui agraciado pela música melódica que vinha de Fiei. Nosso povo que cresce e morre com o Instrumento Fundamento sempre se provou ótimo em sopro.

Flautas finas que parecem a paz das terras, o clarinete de pedra que provocava diante o sopro bruto e não cortês, trompa aquela que faz reviravoltas quase douradas para agraciar o ouvinte em gracejo, e o trompete que instaura a linha da música.

Foi uma subida pouco ruim devido ao tamanho da ponte, mas ao chegar nos portões de pedra cintilante vermelha, fiz o sinal dos 3 dedos para os guardas da residência de Deus, e subi pares longos e incisivos de escada para então me ajoelhar perante ele, cuja presença era esnobe ao ponto de me provar humildade.

Sempre daquelas suas lindas vestes de seda verdes e vermelhas, sobre também o longo cabelo rubro e olhos cintilantes na mesma cor verde e vermelha das suas vestes nobres, estava ali me fitando sereno, ao trono e envolto também dos manejadores de Instrumentos Fundamento mais sublimes das cidades.

— Fui requisitado. — eu confirmei, e me levantei, com ele ainda em aparência serena ali, de rosto fino e o corpo condecorado.

— Tire desse teu elmo, Orm — ele pediu, e me esperou fazer — Dêem ao bom Soprano, um banco e um banquete! — e então, seu sorriso claro iluminou o meu.

Eu jazia ao seu lado, do trono gigante e feito em tiras quase mágicas de confete e fiapos, todos tão coloridos quanto o dia de hoje e ainda sua corte, das vidraças em mosaicos amarelos e cortinas em linhas circulares que rondavam todo o teto em cores inúmeras.

As frutas vindas de bandejas rosas era um deleite para os olhos e o estômago. Uvas e mangas, mamão, melão e maçã que nada faziam além de me divertir o paladar.

— Este é, afinal, seu último dia aqui em Fiei — ele contou em tom triste. Pegou de meu cabelo e segurou minha nuca, e nada reagi, pois já sabia de tal decepção — Tenho algo a lhe pedir, meu bom e antigo amigo, Orm.

Eu o fitei sério igual seu tom de voz, e o sorriso branco ainda existia de seu rosto, como a petulância da mais brilhante das crianças.

— Fale, meu Deus. — eu pedi, segurando de seu antebraço.

— Preciso do coração que mais confio, para gerenciar a Prisão do Aquém. E nada de opção mais tenho a não ser você de cuidar dos tolos que praguejaram nossa ideologia. Posso lhe pedir clemência por desconsiderar tal espada para algo tão imperdoável igual cuidar de lamentos de traidores, meu querido Orm? — ele rogou em forma de pergunta, algo que mesmo ele não queria.

Mesmo que tivesse falado bastante algo tão deprimente. Sobre a sucessão dos instrumentos de sopros que enchiam a audição em boa sinfonia, seu olhar me contava algo mais profundo. Senti uma pontada de ressentimento vindo daquelas suas pupilas verdes e íris vermelha. E eu nada posso fazer além de confirmar tal fato.

— Se é você que pede, meu Deus, morreria pelo pedido — confirmei, em olhos tingidos de perseverança e coragem, ignorando a tristeza no coração — E obrigado pelo banquete tão estimado.

— Pois termine! Não o quero fazer desfeita em meio ao som que pedi a ti pelos meus aulos, e o requinte vindo dos melhores pés de frutas de Souplaza!

Sorrimos, e mesmo em silêncio, nos divertiamos com a nuances dos instrumentos, ao par das paredes de vidro da sala de trono, que parecia mudar de cor ao par da troca das notas.Me encontrei novamente à casa, sobre meus cabelos curtos e bem aparados no refrescor das paredes de pedra laranja.

A barba que cercava de minha boca sumiu com meus lábios remoídos. E as lágrimas retornaram aos meus olhos.

Sem forças, caí ao pé da porta sobre o pranto desiludido e a vontade ímpar de nada mais fazer. O vestido que escondi pelos entremeados das gavetas, retirei para chorar de seu símbolo já morto, em saudade cortante.

Tirei uma parcela de seu manto da terra dos cantos anílicos, e escondi sobre minhas vestes de tecido duplo rico, para pegar de meu fardamento e de minha espada.


Nota: os capítulos na perspectiva do Orm serão todos escritos pelo Niko-Harkuss

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