Capítulo 10

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Mehron

Lentamente, senti minha mente emergir até a superfície enquanto despertava. Parte de mim queria se render ao torpor e se entregar ao sono sem sonhos novamente, deslizando em segurança até as profundezas vazias da consciência. No entanto, a outra parte se lembrava de onde eu estava e do quanto perigo eu correria se não escapasse.

À medida que as lembranças do meu confronto com Mir retornavam, meus pensamentos aflitos me envolviam como um manto gelado. Forcei minha mente nebulosa a se organizar, afastando os dentes da escuridão que tentava me abocanhar e engolir. Quando meus olhos se abriram, no entanto, tudo continuava escuro como quando os mantinha fechados.

As paredes eram feitas de sombras densas, e o ar estava impregnado com um aroma metálico. Eu flutuava em meio ao vazio, minhas mãos inúteis tentando se mover, tocar alguma coisa. Eu não sentia dor, mas era claro que havia algo errado comigo.

Onde estou? Na medida em que as lembranças do meu confronto com Mir retornavam, meus pensamentos aflitos me envolviam como um manto gelado. E por que não consigo me mover?

Minha cabeça, uma lua solitária em órbita, estava imóvel como os punhos, parada no ar sem obedecer os meus comandos. Aquilo era um sonho, ou eu havia sido capturado? Talvez tivessem me encontrado, desacordado e cheio de meu próprio sangue naquele salão vazio, e agora eu estava preso, sem chance alguma de escapar.

Quase podia ver os olhos de Igh faiscando em deleite com a minha captura, a boca de Arwin se curvando para baixo enquanto sufocava. Meu próprio sufocamento, mais lento e deliberado enquanto eu apodrecia naquela prisão.

Parei de tentar lutar contra meus próprios membros quando percebi que algo se movia na escuridão, o som baixo de passos ecoando em algum lugar no escuro atraiu minha atenção. Eu podia imaginar quem era antes que pudesse vê-lo.

Quando uma porta estreita se abriu, iluminando a cela com uma tênue luz amarelada, a figura perturbadora do semideus da tortura se precipitou para dentro, sua pele pálida reluzindo contra o brilho fantasmagórico da tocha que empunhava. Em sua outra mão, uma pequena caixa que parecia ser feita de jade cintilou levemente.

- É bom encontrar você desperto - a voz sibilante de Lel ecoou pelas paredes escuras. - Não teria graça se fosse diferente.

Com minha falta de respostas, o semideus da tortura pendurou sua estranha caixa no cinto e agarrou meu rosto com a mão livre, sua força não foi o bastante para fazer minha cabeça se mover.

- Você parece bem acordado - ele aproximou perigosamente sua tocha dos meus olhos. - Por que não diz nada? Nenhuma palavra sobre fugir? Nenhuma gracinha?

- Esta cela não parece muito convencional - respondi, a língua pesada entre os dentes. - É algo padrão, ou se deve à minha quase fuga de mais cedo?

O rosto de Lel estava muito próximo quando ele sorriu.

- É temporário. Você só permanecerá aqui enquanto algum poder restar aí dentro - ele tocou minha testa com um polegar frio. - Depois, ficará com os outros prisioneiros.

- Não resta muito o que roubar. Usei o máximo que pude para garantir isso - comentei. - Lamento pela decepção.

Sem aviso, ele aproximou a tocha do meu rosto, as labaredas lambendo minha mandíbula lenta e dolorosamente.

Vislumbrei um brilho afiado cintilando em seus olhos e tentei me afastar das chamas, mas foi em vão. Meu crânio estava preso no lugar, as aptidões muito enfraquecidas para servirem de alguma coisa.

Gritei quando senti as bolhas emergindo na pele, os dedos das mãos aprisionadas se movendo em pura agonia enquanto meu rosto queimava. Lel não parecia interessado em afastar a tocha. Ele precisaria de mim vivo para obter meus dons, mas isso não significava que não poderia se divertir.

O cheiro de carne queimada preencheu o ambiente, fumaça negra entrou pelas minhas narinas e me sufocou. Tossi, gritei e me engasguei enquanto sentia a linha da mandíbula queimar até o osso, os cílios e a sobrancelha derretendo com o calor da tocha enquanto meus olhos se reviravam de dor dentro do crânio. Para meu azar, Lel não me queimaria até a morte.

- Eu planejava começar pelos dedos, mas me empolguei - ele afastou a tocha, mas a ardência permanecia a mesma. Não precisava ver para saber que a linha da mandíbula e bochecha esquerda se transformou em uma bagunça de bolhas e pele derretida. Meu rosto estava destruído. - Mas suponho que não haja muitas maneiras para torturar um falso deus que não possui um corpo. Terei que ser criativo.

O semideus se afastou, e vislumbrei o brilho metálico de uma agulha em sua palma enquanto ele removia uma seringa da caixa de pedras preciosas que carregava no cinto.

Eu continuei rugindo e ofegando pela dor que irradiava da pele destruída, sentia uma vontade avassaladora de proteger o rosto com as mãos, colocar gelo, fazer qualquer coisa. Mas minhas mãos não se moviam, eu não podia me ajudar.

Quando me dei conta, Lel estava diante de mim outra vez. Fechei os olhos com força, esperando que ele me queimasse novamente. Ele poderia destruir meu rosto inteiro. Derreter meus olhos dentro do crânio. Queimar meus dedos, um por um.

Eu precisava pensar em um jeito de fugir antes que isso acontecesse, mas como? Mal conseguia me manter são com a dor de uma única queimadura.

Mas, ao invés do fogo, foi uma picada que senti no pescoço. Abri os olhos e vi Lel com sua seringa, injetando um líquido frio direto na veia.

- Sem corpo, quase sem dor física - ele parecia decepcionado. - Não há muito o que eu possa fazer com sua estrutura corpórea, mas sua mente é diferente. Ampla como a de qualquer homem. Cheia de medos e arrependimentos.

Estremeci involuntariamente, um frio cortante se espalhando de dentro para fora.

- O que é isso? - meus dentes bateram, não sabia ao certo se era pela dor ou pelo frio.

Lel não respondeu. Ele apenas observou enquanto minha respiração, antes acelerada, reduzia até quase parar. Só percebi que havia fechado os olhos quando as memórias emergiram.

Arwin, olhando para mim. Seus olhos celestes perdendo o brilho enquanto ela sufocava lentamente, a acusação silenciosa em seu rostinho pequeno.

Sua culpa.

Eremonth, o Deus da Paz em seu leito de morte, as bochechas côncavas enquanto sua vida se esvaía na medida em que a guerra estourava.

Você deveria ter lutado pela paz no meu lugar, você prometeu.

Fracasso.

As palavras de Ziuceg, que me perseguiriam até meu último dia.

Nessa mesma merda de momento, seus "bravos" e "corajosos" guerreiros devem estar rebolando e chorando por piedade, grasnando como as melhores putas e os melhores porcos de Kater, ajoelhados em mãos ocupadas, pedindo ajuda para o deus puto da diplomacia. Que gracinha, não é?

Os pensamentos rodopiavam como sombras dançando nos limites de uma fogueira, entrando e saindo de foco sem que eu tivesse controle sobre eles. Tentei afastá-los, mas se misturavam com a dor do rosto arruinado e a falha da minha fuga de uma maneira impossível de separar.

Pensar racionalmente se tornou inviável; sequer passou pela minha mente abarrotada de erros e preocupações. Senti Lel sugar minhas aptidões e um abismo se abriu aos meus pés.

Você perdeu, disse Arwin em meus pensamentos.

Fracasso, meu pai repetiu.

E então a escuridão me engoliu.

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⏰ Last updated: Apr 07 ⏰

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