OS HÓSPEDES DA MEIA-NOITE

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Sei, sim, sei que é noite!(Xavier de Maistre, Viagem ao Redor do Meu Quarto).
Não tardou muito que os dois noturnos viajantes começassem a ouvir os latidos furiosos dos cães que, no terreiro de Pereira, denunciavam aproximação de gente suspeita junto à casa entregue a sua vigilante guarda.
—Por aqui perto fica algum rancho, Mochu, avisou o camarada; havemos enfim de descansar hoje .. Mas, que gritaria faz a cachorrada!... São capazes de nos engolir antes que venha alguém saber se somos cristãos ou não... Safa! Que canzoada!... Ó Mochu, o Senhor deve ir na frente... rompendo a marcha... — Você, respondeu o alemão, bate neles com cacete...
—Nada, retrucou José com energia, isso não é do ajuste... Quem está montado, caminhe adiante... Ainda por cima agora essa!
Depois de resmonear algum tempo, exclamou:
— Ah! espere, já me lembrei de uma coisa.. . O filho do velho é mitrado. . .
E, dizendo esta palavra, de um só pulo montou na anca do cargueiro, que, ao sentir aquele inesperado acréscimo de peso, parou por instantes e com surdo ronco procurou lavrar um protesto.
— Juque, observou o alemão sem a menor alteração na voz, assim burro quebra cadeira. Depois morre... e você tem de levar as cargas dele às costas...
Quis o camarada encetar nova discussão, mas a esse tempo chegavam ao terreiro, onde o ataque furioso dos cães justificou a medida preventiva de José, o qual entrou, todo encolhido atrás das cargas, a gritar como um possesso:
—Ó de casa! Eh! lá, gentes! Ó amigos!
Aumentou a algazarra da cachorrada por tal modo, que os tropeiros de Cirino, pousados no rancho próximo, acordaram e bradaram juntos:
—Que diabo é isto? Temos matinada de lobisomens?
Abriu-se nesse momento a porta da casa e apareceu Cirino na frente de Pereira, trazendo este uma vela que com a mão aberta amparava da brisa noturna.
—Quem vem lá? clamaram os dois a um tempo.

—Camarada e viajante, respondeu com voz forte e simpática o alemão, achegando-se à luz e tratando de descer da cavalgadura. Quem é o dono desta casa? —Está aqui ele, respondeu Pereira levantando a vela acima da cabeça para
dar mais claridade em torno de si.
—Muito bem, replicou o recém-chegado. Desejo agasalho para mim e para o meu criado e peço muitas desculpas por chegar tão tarde.
Aproximara-se também o José, cuidando logo, no meio de muxoxos e pragas, de pôr em terra a carga do burrinho, o qual amarrara pelo cabresto a uma vara fincada no chão.
—Mas, observou Cirino, que faz o Senhor por estas horas mortas a viajar? ... —Deixe o homem entrar, atalhou Pereira, e acomodar-se com o que achar... Pois, meu senhor, desapeie. Bem-vindo seja quem procura teto que é meu. —Obrigado, obrigado, exclamou com efusão o estrangeiro.
E, apresentando a larga mão, apertou com tal forca as de Cirino e Pereira que lhes fez estalar os dedos.
Em seguida, penetrou na sala e tratou logo de arranjar os objetos que trazia a tiracolo, colocando-os cuidadosa e metodicamente em cima da mesa, no meio dos olhares de espanto trocados por quantos o estavam rodeando.
Na verdade, digna de reparo era aquela figura à luz da bruxuleante vela de sebo; compridas pernas, corpo pequeno, braços muito longos e cabelos quase brancos, de tão louros que eram.
—Será algum bruxo? perguntou a meia voz Cirino a Pereira.
—Qual! respondeu o mineiro com sinceridade, um homem tão bonito, tão bem limpo!
Entrara José com uma canastra ao ombro e, descarregando-a no canto menos escuro do quarto, julgou dever, sem mais demora, declinar a qualidade e importância da pessoa que lhe servia de amo.
—O Senhor aqui é doutor, disse ele apontando para o alemão e dirigindo-se para Cirino...
—Doutor?! exclamou este com despeito.
— Sim, mas doutor que não cura doenças. É alamão lá da estranja, e vem desde a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro caçando anicetos e picando borboletas...
— Borboletas? interrompeu com admiração Pereira.
— Acui cui! Por todo o caminho vem apanhando bichinhos. Olhem... aquele saco que ele traz...
—O meu camarada, avisou com toda a tranqüilidade e pausa o naturalista, é muito falador. Os senhores tenham paciência... Ande, Juque, deixe de tagarelar! ...
—Não, protestou Pereira levado de curiosidade, é bom saber com quem se lida... Então o Senhor vem matando anicetos? mas para que, Virgem Santíssima! . . .
—Para quê? retrucou o camarada descansando as mãos na cintura. O patrão e eu já temos mandado mais de dez caixões todos cheinhos lá para as terras dele...

Inocência - Visconde de TaunayWhere stories live. Discover now