A Carta de Recomendação

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Aquele bom velho, cuja benévola hospitalidade não tinha limites, Julgara do seu dever tratar do melhor modo possível a Waverley, tosse ele o último camponês saxônio... Mas o título de amigo de Fergus fê-lo considerar como precioso depósito, merecedor de toda a sua solicitude e da mal" atenta obsequiosidade.
(Walter Scott, Waverley) Quando Meyer abriu os olhos, já achou Cirino de pé, arranjando uma canastrinha.
—Oh! exclamou ele em tom de louvor, o Senhor madruga muito. —É verdade, replicou o outro, um tanto melancólico.
—E Juque ainda dorme!... Este Juque parece mais um tatu do que um homem... Todo o dia o estou acordando...
E juntando o feito ao dito, foi o pachorrento amo sacudir o criado. Depois de se espreguiçar à vontade, sentou-se este no couro em que dormira, e pôs-se a esfregar com todo o vagar os olhos papudos ainda cheios de sono.
—Deus esteja com vossuncês, disse ele entre dois bocejos. Ora, Mochu, o Senhor acordou-me no melhor do sono. Estava sonhando que voltara para o Rio de Janeiro e ia acompanhando uma música pelo Largo do Rocio afora. Conhece o Largo do Rocio? perguntou a Cirino. —Não, respondeu-lhe este. —Xi! Que largo! Hem, Mochu?
E novo bocejo cortou-lhes a descrição da louvada praça.
—Juque, exclamou Meyer coçando a barba com ar alegre, o dia hoje está claro e bonito. Havemos de apanhar pelo menos umas doze borboletas novas. —E quanto me dá Mochu, se eu agarro vinte e cinco? —Vinte e cinco? repetiu o alemão com alguma dúvida. —Sim, vinte e cinco... e até mais, vinte e seis. Diga, quanto me dá? —Oh! eu dou a você dois mil-réis.
—Está dito, fecho o negócio. Eu cá sou assim, pão pão, queijo queijo; tão certo como chamar-me José Pinho, seu criado, carioca de nascimento e batizado na Freguesia da Lagoa, lá para as bandas do Broco, e...
—Agora, interrompeu Meyer, vá buscar água para lavar a cara, e tire sabão e pente na canastra.
—Olhe, senhor doutor, continuou o camarada sentado sempre e voltando-se para o lado de Cirino, esta minha vida é levada de seiscentos mil diabos. Nós saímos do Rio já há mais de dois anos; não é, Mochu? —Vinte e três meses, retificou Meyer.
—Pois bem; desde esse tempo estamos a viajar como se fosse penitencia de confissão. E não é só isso, não, senhor. Todos os dias ando pelo menos nove léguas correndo aqui e acolá, dando voltas, caindo, atrás dos bichos voadores...
— Juque! tentou atalhar Meyer, olhe...

—Pois é o que lhe digo, prosseguiu José Pinho. Tenho hoje uma raiva daquelas porcarias todas... Nem sei por que, Nosso Senhor Jesus Cristo foi criar esta súcia de criaturas sem préstimo... Enfim, Ele é quem sabe... Quanto a mim, se pudesse, atacava fogo em todas as lagartas, porque da lagarta é que nascem esses anicetos, que estão enchendo mundos... Mas, veja, senhor doutor, lá na terra deste homem,— (coitado, é bem bonzinho e me estima muito)! — valem esses bichos mais do que ouro em pó... Também, se o Mochu não gostasse de mim, havéra de ser muito ingrato... Outro como eu não encontra mais, não, senhor... Tenha a santa paciência .. não, senhor, isto é o que lhe posso afiançar.
No meio desse fluxo de palavras, Meyer fora em pessoa procurar na canastra
o pente e o sabão.
Mostrando os objetos ao falador, ordenou com energia:
—Cale a boca, Juque, cale a boca, tagarela! Vá buscar água já; senão... não levo você ao mato hoje.
Levantou-se de pronto José Pinho e meio a resmungar saiu, tomando uma das canastras.
—Esse camarada, disse Meyer depois de algum silêncio e para explicar o seu procedimento, é uma pessoa muito boa... fiel e inteligente. Mas... fala demais. É-me precioso, porque apanha borboletas com muito talento e jeito.
Entrando José Pinho e ouvindo o final do elogio, depôs, com ar de grave importância, a bacia no chão.
Diante dela, e depois de tirar do nariz os óculos, colocou-se logo Meyer, ou antes acocorou-se e, em relação ao tronco, tão compridas eram as suas pernas, que, inclinado por sobre a água, lhe ficava a cabeça à altura dos joelhos.
Levou a ablução uns largos minutos e foi com os cabelos grudados ao casco e escorrendo água que ele se levantou, justamente quando entrava Pereira.
Nesse momento, assumira o tipo daquele homem proporções do mais pasmoso grotesco; entretanto, tão vária é a apreciação de cada um, tão caprichoso
o julgamento individual, que o mineiro, acercando-se de Cirino, disse baixinho:
— Vosmecê já reparou, amigo, como este estranja é figura bonita? Tão arco! e que olhos que tem!... As mulheres hão de perder a cachola por causa deste bicharrão... Então, Senhor Mala, continuou interpelando em voz alta o seu espécime de beleza masculina, que tal, passou aqui a noite?
—Oh! Senhor Pereira!... Desculpe, se o não vi... Estava sem óculos. Já lhe respondo... espere um bocadinho.
E ainda todo molhado, correu a tomar os óculos, que assentou em cima dos salientes lúzios.
—Agora, muito bem... Dormi, meu bom amigo, como quem não tem pecados...
—Então, observou Cirino, quase mau grado seu, tenho-os eu; porque, da meia-noite para cá, não pude mais pregar olho...

Inocência - Visconde de TaunayOù les histoires vivent. Découvrez maintenant