O EMPALAMADO

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Ao homem não faltam importunações quanto à vossa capacidade, bem a conhecemos. (Molière, O Médico A Força).
Conforme o prometido, trouxe Pereira a rede para a sala dos li hóspedes e, encetando um modo de vigilância muito especial ainda que perfeitamente inútil em relação à pessoa suspeitada, associou os sonoros roncos do valente peito à ruidosa respiração de Meyer.
Se, contudo, não tivessem seus olhos a venda da confiança ou, melhor, se o sono não os acometesse sempre com tamanha imposição,, decerto em breve houvera estranhado a cruel agitação em que vivia Cirino e que este não podia mais encobrir.Na verdade, o modo por que o infeliz mancebo passava as noites era de fazer
nascer suspeitas no espírito mais indiferente e desprevenido. Ou se revolvia na cama, dando mal abafados suspiros, ou então saia para o terreiro, onde se punha a passear e a fumar cigarros de palha uns após outros, até que os galos, alcandorados na cumeeira da casa e nas árvores mais próximas, anunciassem as primeiras barras do dia.
Desabrida paixão enchia o peito daquele malsinado; dessas paixões repentinas. explosivas. irresistíveis, que se apoderam de uma alma, a enleiam por toda a parte, prendem-na de mil modos e a sufocam como as serpentes de Netuno a Laocoonte. Conhecedor como era, dos hábitos do sertão, do jugo absoluto dos preconceitos, do respeito fatal à palavra dada, antevia tantas dificuldades, tamanhos obstáculos diante de si, que, se de um lado desanimava, do outro mais sentia revoltado o nascente e já tão violento afeto.
—Deus me ajudará, pensava consigo mesmo: o que só quero e a amizade de Inocência Há dias que não a vejo... se não puder mais vê-la... dou cabo da vida... Sublevava-se o seu coração, girava-lhe o sangue com vertiginosa rapidez nas velas e vinha toldar-lhe a vista, trazendo ondas de rubro calor ao descorado rosto.
—Nossa Senhora da Abadia, implorava ele puxando os cabelos com desespero, valei-me neste apuro em que me acho! Dai-me pelo menos esperanças de que aquela menina poderá um dia querer-me bem... Nada mais desejo... Possa o fogo que me consome abrasar também o seu peito...
Costumava a fervorosa prece dirigida à santa da especial devoção de toda a Província de Goiás acalmar um pouco o mancebo, que alquebrado de forças pegava no sono para, instantes depois, acordar sobressaltado e cada vez mais abatido. Também estava sempre de pé quando Pereira costumava saltar da rede.
—Oh! observou ele da primeira vez, isto é que se chama madrugar.
—Pois é contra o meu costume, replicou Cirino, todas estas noites tenho passado mal...
—Na verdade vosmecê não está com boa cara... —Creio que me entraram no corpo as maleitas. —Essa é que é boa! Então o doutor foi emprestar(') da doente a moléstia?...
Olhe, é preciso por-se forte, porque hoje mesmo há de lhe chegar uma boa maquina de doentes...
—Melhor...
—Já está tudo espalhado por ai da sua chegada e a romaria não há de tardar. —Cá a espero...
—Naturalmente virá primeiro o Coelho... boa ocasião de pagar a sua divida... Não tenha receio de puxar mais no preço...
—Daqui mesmo pretendo despachar um próprio para me ver livre dessa obrigação...
—Isso mostra que o senhor é pessoa de brio... Não é como certa gente que conheço...
Ao dizer estas palavras, voltara-se Pereira para Meyer a contemplá-lo atentamente.
Estava na verdade o alemão digno de exame, posto ainda de parte outro qualquer motivo que não o de simples curiosidade.
Dormia com as pernas e braços abertos e caldos para fora do estreito leito das canastras: tinha o queixo muito levantado pela posição incômoda da cabeça, deixando a boca meio aberta ver uma fieira de magníficos dentes.
—Está roncando, hem? murmurou o mineiro. Cavouqueiro... a mim você não engana..., mas é o mesmo!

Iam as prevenções de Pereira tomando proporções de idéia fixa, e Meyer, na simplicidade da ignorância, como que de propósito ministrava elementos para que elas mais e mais se fossem arraigando.
Assim, ao almoço, lembrou-se de perguntar entre duas enormes colheradas de feijão:
—Sua filha, senhor Pereira? Como vai? É melhor?
—É melhor o quê, Mochu? exclamou o pai com modo esquivo. —A saúde dela é melhor?
—Está melhor; está, está, respondeu Pereira muito secamente. Está boa... vai fazer uma viagem...
—Viagem, para onde?... Até a vila?
—Homem; Mochu, observou o mineiro um tanto desabrido, vosmecê está que nem mulher velha, tudo quer saber...
Meyer, nessa repreensão, que lhe causou vexame e alguma admiração, só enxergou censura justa a sua curiosidade, falta que confessou com toda a nobreza, embora agravando a situação.
—É verdade, Senhor Pereira, concordou ele. A boa educação não manda o que eu fiz .. mereço, porém, desculpa, mereço... Sua filha é tão interessante... que me lembro sempre dela... Tenho comigo uns presentezinhos...
—Guarde-os, rosnou Pereira abafando a reflexão num acesso de tosse.
E para evitar o prosseguimento de semelhante assunto, deu por finda a refeição, levantando-se da mesa.
— Aí vem o Coelho, doutor, exclamou ele olhando para fora. Xi! como esta amarelo!... Há tempos que o não via... já parece alma do outro mundo... É do tal em quem falamos... Aperte-o, porque é mofino como tudo...
E, interpelando a quem chegava gritou:
—Bons olhos o vejam!... Se não fosse, amigo senhor Coelho, ter médico em casa, nunca havera de vê-lo por cá; não é verdade?
—Ora, respondeu o outro com um gemido, ando sempre tão doente. Nem faz gosto viver assim... Mas qu'é dele, o homem? —Está aqui...
—Já me disseram que faz milagres. Deixou nome para lá das Parnaíbas... Sabia?— Lá que tivesse deixado nome, não: mas que é cirurgião de patente, tenho
certeza, porque, num abrir e fechar de olhos, me pôs de pé uma pessoa cá de casa.
—Se ele me curar... não sei mesmo como lhe agradecer.
—É pagar-lhe, concluiu Pereira, tratando logo de advogar os interesses do hóspede.—Sim, hei de... pagar-lhe, confirmou o outro com alguma hesitação.
—Em todo caso, desça do animal.
Pouco depois, entrava na sala e cumprimentava a Cirino e a Meyer a pessoa a quem o mineiro chamara Coelho. Era homem já de idade, muito mais quebrantado por enfermidades que pelos anos; tinha a testa enrugada, as bochechas meio inchadas e balofas, os lábios quase brancos e os olhos empapuçados.
—Qual dos senhores é o doutor? perguntou ele.
—Sou eu, respondeu Cirino, revestindo-se de convicto ar de importância, enquanto Meyer apontava para ele, cedendo direitos que talvez pudesse contestar.
Interveio Pereira com amabilidade:
—Sente-se, senhor Coelho, sente-se. Não se ponha logo a falar de moléstias... Isto não vai de afogadilho... Descanse um pouco... Olhe, já almoçou? —O pouco que como, retrucou o outro, já está comido.
—Pois bem, ponha-se primeiro a gosto: depois então, converse com o doutor... Diga-me: que há de novo pela vila?
—Que eu saiba, nada... Também há mais de ano que de lá nenhuma noticia tenho... já não se me dá do que vai pelo mundo... Quem não goza saúde, perde o gosto de tudo... E mesmo uma calamidade . . .
Enquanto Coelho, em toada monótona, desfiava outras queixas no mesmo sentido, tirara Cirino da canastra o seu Chernoviz e algumas ervas secas que depôs em cima da mesa.
—O senhor, declarou ele voltando-se para o doente, está empalamado.. —É verdade, Senhor doutor.
— Eu, que não sou físico, observou Pereira, diria logo isso...
—Xi, compadre! atalhou Coelho com impaciência e pedindo silêncio.
—O senhor, continuou Cirino com entono, teve maleitas muitos anos afins depois começou a sentir fastio e o estômago embrulhado; inchou todo e em seguida definhou... Aos poucos, foi perdendo a sustância e o talento.
—Tal qual! murmurou Coelho seguindo com cautelosa atenção a marcha do diagnóstico.
—Agora, o senhor não pode comer que não sinta afrontação, não é? —Muita, senhor doutor.
—Este homem, disse Pereira para Meyer, leu bastante nos livros... —Veio-lhe depois uma canseira, e, quando o senhor anda, dão-lhe uns suores e tremuras por todo o corpo... O baço está ingurgitado e o fígado também... De noite fica o senhor sem poder tomar respiração, mais sentado que deitado... Ás vezes tosse muito, uma tosse sem escarrar, como quem tem um pigarro seco...
—Tal qual! repetiu o enfermo com unção e quase entusiasmo.
—Pois bem, terminou Cirino, como já lhe disse, o Senhor está empalamado. —E não há cura? perguntou Coelho meio duvidoso. —Há, mas o remédio É forte —Contanto que faça bem... —Muita gente, replicou Cirino, tenho já curado em estado pior que o Senhor; mas, repito, o remédio É violento...
—Tomarei tudo, afirmou Coelho: há anos que faço um horror de mezinhas e de nenhuma delas tiro proveito. Vamos ver.
Cirino neste porto mudou o tom de voz e olhando para Pereira:

Inocência - Visconde de TaunayOnde histórias criam vida. Descubra agora