EM CASA DE CESÁRIO

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Ah! a perspectiva que pode mais docemente sorrir ao meu coração é a do aniquilamento. (Klopstock, A Messiada)
Cirino, logo que se estabeleceu em casa do seu novo hospedeiro, tratou de lhe captar as simpatias. Medicou um escravo que estava de cama, fez valer o conhecimento e amizade que tinha com
Pereira, conversou muito a respeito dele e incidentemente deu noticias de Inocência.
Atalhou-o Antônio Cesário neste ponto.
—Mecê a viu? perguntou ele.
—Pois não, respondeu o moço, por sinal que a curei de sezões.
—Ah! É uma guapa rapariga...
—Parece-me...
—Isso é... falo assim, porque afinal... daqui a poucos dias está casada... não sabe?
—Ouvi contar.
—Pois é verdade. O noivo passou por cá e levou a minha licença. É homem de mão-cheia. A pequena deve estar contente. Ah! nem todas no sertão são felizes assim. Tem-se por aqui o mau vezo de arranjar casamentos as cegas, e às vezes se encambulha um mocetão com uma fanadinha ou então uma sujeita de encher o olho com algum rapaz todo engrouvinhado...Cruz! E, uma vez dada a palavra, acabou-se...
Achou Cirino a ocasião própria e redargüiu com vivacidade:
—Então o senhor não é desse parecer.
— Conforme, respondeu logo Cesário com reserva. Aos pais é que convém inziminar essas coisas.
—Boa dúvida... Mas... se... sua afilhada... não gostasse de Manecão?
—Não gostasse?
—Sim.
—E que nos importa isso? Uma menina como ela não sabe o que lhe fica bem ou mal... Ninguém a vai consultar. Mulheres, o que querem é casar. Não ouvi já o patrício dizer que elas não casam com carrapato, porque não sabem qual é o macho?
E Cesário sorriu.
Depois, fechando de repente a cara, perguntou:
—Por que é que estamos a dar de língua nesse particular? Não sou amigo disso. Quer-me parecer que mecê é um tanto namorador. . .
—Eu? protestou Cirino com vivacidade.
—Boa dúvida. Eu cá nem falar nelas quero. Mulher é para viver muito quietinha perto do tear, tratar dos filhos e criá-los no temor de Deus; não é nem para parolar-se com ela, nem a respeito dela.
Sempre as mesmas teorias de Pereira: a mesma grosseria repassada de desprezo ao sexo fraco, a mesma suscetibilidade para desconfiar de qualquer pessoa ou de qualquer palavra que lhes parecesse menos bem soante aos prevenidos ouvidos.
—Minha afilhada, continuou Cesário, deve levantar as mãos para o céu. Achou um marido que a há de fazer feliz e torná-la mãe de uma boa dúzia de filhos. Estremeceu Cirino, mas nada disse.
Por toda a parte esbarrava de encontro a preconceitos que nada podia vencer.Nessa mesma tarde quis montar a cavalo e voltar para Sant'Ana entretanto, o
pensamento da resistência com que Inocência encetara a terrível lata com seu pai, atuou em seu espírito e o reteve.
Decidiu-se a atacar o touro pelas aspas.
Restar-lhe-ia ao menos o consolo do desabafo, e num jogo perdido arriscava ainda ousado lance.
—Senhor Cesário, disse ele na manhã seguinte, preciso muito falar-lhe em particular.
—A mim?
—Sim, senhor.
—Pois, estou aqui às suas ordens. —Quisera que saíssemos. O que lhe vou dizer... ninguém pode... ninguém deve ouvir.
—Oh! O senhor me assusta... Então tem segredos que me contar? —Tenho...
—Pois vá lá... Mapiaremos fora... Ao meio-dia esteja na minha roga... sabe onde é?
—Sei...
— Espere-me num pau de peroba seco que está derrubado.
—Lá estarei.
Muito antes da hora aprazada, achava-se Cirino no lugar indicado. Devorava-o a impaciência.
Resolvido a desvendar sem rebuço os seus amores a esse homem a quem mui conhecia, que por ele não tinha senão razões de passageira simpatia, e de quem, contudo, estava dependente sua felicidade, considerava decisivos os momentos.
Quem em tais circunstâncias se acha, enxerga em tudo quanto o rodela sintomas de bom ou mau agouro, e nesse instante a Cirino pouco parecia sorrir a natureza.
Não chovia; mas o tempo estava carregado e sombrio.
Tinha o céu cor acinzentada e do lado do poente linhas negras e continuas denunciavam trovoada talvez para a tarde.
Era o local, além disso, tristonho. Enfileiravam-se numa grande área, pés de milho já pendoados, dentre os quais surgiam possantes madeiros de tronco rugoso e galhada completamente despida de ramagem, uns, da base à extrema ponta, lugubremente enegrecidos pelo fogo lançado antes da sementeira; outros perdidas todas as folhas em conseqüência da incisão profunda e circular com que o machado impedira a ascensão da selva. Esses quedavam vivos mas de uma vida latente e esmorecida, denunciada por entanguidos brotos no mais alto do tope.
Quando o dia é claro, aqueles gigantes da floresta, que pela robustez do cerne haviam desafiado as chamas e os esforços do homem, servem de poleiro a inúmeros bandos de papagaios, periquitos, araçaris, ou de graúnas que formam concertos capazes de ensurdecer os ecos. Naquela ocasião, porém, tudo era silêncio. Só de vez em quando se ouviam pancadas surdas e intermitentes dos pica-paus de crista vermelha, agarrados aos troncos das árvores e a explorar-lhes os pontos carunchosos, subindo em ziguezagues.
A hora ajustada, apresentou-se Antônio Cesário.
Por cautela vinha armado de uma espingarda de caça, que bem serviria para derrubar alguma onça, ou animal daninho.
Seu rosto, habitualmente sereno, indicava certa inquietação, repassada de curiosidade.
—Aqui me tem, doutor, disse ele descansando a arma sobre o pau derrubado e sentando-se ao lado de Cirino. Estou pronto para ouvi-lo quanto tempo queira...
Muito pensara Cirino nesse momento a que devia chegar e, entretanto, não pudera achar o modo por que encetasse as suas declarações. Parafusara de continuo mil pretextos sem nada assentar Foi, pois, a balbuciar que respondeu:
—0 Senhor.. há de me desculpar... o incômodo que... lhe dou. . —Incomodo nenhum.
—E deve estar... espantado do que lhe pedi... vir falar comigo... em lugar ermo... comigo que sou como qualquer hospede. como tantos que sua casa tão franca todos os dias recebe
—Com efeito, confirmou Cesário.
—Pois bem, daqui a nada tudo lhe ficará claro e explicado . Se enquanto eu falar... o ofender, perdoe-me, ouviu?
Senhor Cesário, continuou Cirino após breve pausa, se o senhor visse um homem arrastado numa corredeira e pudesse atirar-lhe uma corda e salvá-lo... o faria?

Inocência - Visconde de TaunayWhere stories live. Discover now