A VIAGEM

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Às vezes sinto necessidade de morrer, como pessoas acordadas sentem necessidade de dormir (Mme Du Deffand).
Encantador país! Teu aspecto, teus solitários bosques ar puro e balsâmico, tem o poder de dissipar toda a sorte de tristezas, menos a da perda da esperança.
(Carlota Smith). Cirino em pouco mais de uma hora, transpôs a distancia da povoação ao rio. Também, na légua e quarto que ate lá media só há de ruim o trecho em que fica a floresta que borda as margens da majestosa corrente.
Nessa mata, trazem os troncos das árvores vestígio das grandes enchentes;
o terreno é lodacento e enatado; centro de putrefação vegetal donde irradiam os miasmas que, por ocasião da retirada das águas, se formam em dias de calor abrasador e sufocante.
Abundam ali coqueiros de estípite curto e folhuda coroa chamados aucuris, a que rodeiam numerosas lagoinhas de água empoçada e coberta de limo.
Em nada é, pois, aprazível o aspecto, e a lembrança de que ali imperam as temidas sezões faz que todo o viajante apresse a travessia de tão tristonhas paragens.
Ouve-se a curta distancia o ruído do rio que corre largo, claro e com rapidez. Como duas verdes orlas refletem-se no espelhado da superfície as elevadas margens, a cujo sopé moitas de sarandis, curvadas pelo esforço das águas e num balancear continuo, produzem doce marulho.
Causa-nos involuntário cismar a contemplação de grande massa liquida a rolar, a rolar mansamente, tangida por força oculta.
Bem como a ondulação incessante e monótona do oceano agita a alma, assim também aquele perpassar perene, quase silencioso, de uma corrente caudal, insensivelmente nos leva a meditar.
E quando o homem medita, torna-se triste.
Franca e espontânea é a alegria, como todo o fato repentino da natureza. A tristeza é uma vaga aspiração metafísica uma relação inquieta e quase dolorosa acima da contingência material.
Ninguém se prepara para ficar alegre. A melancolia, pelo contrário, aos poucos é que chega como efeito de fenômenos psicológicos a encadear-se uns nos outros.
De que modo nasceu aquela enorme mole de água? Donde velo? Para onde
vai? Que mistérios encerra em seu seio?

Largo tempo ficou Cirino a olhar para o rio. Em sua mente tumultuavam negros pensamentos.
Já se havia difundido o crepúsculo, e bandos folgazões de quero-queros saudavam os últimos raios do Sol e despertavam os ecos em descomunal gritaria. De vez em quando, passava algum pato selvagem, batendo pesadamente as asas; sobre as águas, adejavam garças estirando e encolhendo o níveo colo e pombas, aos centos, cruzavam de margem a margem a buscar inquietas o pouso de querência.
Foi a luz gradativamente morrendo no céu, seguida de perto pelas sombras; e
o rio tomou aspecto uniforme como se fora imensa lâmina de prata não brunida.
—Enfim, -conheci o Manecão? pensava Cirino. E para esse é que reservam a minha gentil Inocência . . . Bonito homem para qualquer... para mim, para ela, horrendo monstro!... E como é forte ! . . .
Digamo-lo, sem por isso amesquinhar o nosso herói, a Idéia de força no rival acabrunhava-o.—Se eu pudesse... esmagava-o!... E que ar sombrio e desconfiado!... Meu Deus, dai-me coragem... dai-me esperanças... Nossa Senhora da Abadia!... Nosso Senhor da Cana-Verde... vaiei-me!...
E o mancebo, diante daquela natureza acabrunhadora a quem tanto Importava a paixão que lhe atanazava-o peito, como o inseto a chilrar debaixo da folha de humilde erva, caiu de joelhos, orando com fervor ou, melhor, desfiando automaticamente as preces que sua mãe lhe havia, em pequeno, ensinado.
E o rio lá se ia sereno; e uma onça ao longe urrava, ou algum pássaro da noite soltava gritos de susto, esvoaçando às tontas.
Transpondo na manhã seguinte, o Rio Paranaíba, pisou Cirino território de Minas literais.
Depois de légua e meia em mata semelhante à da margem direita, abrem-se campos dobrados, um tanto arestados do sol, de aspecto pouco variado, mas abundantíssimos em perdizes e codornas. Tão preocupado levava o moço o espírito que, nem sequer uma só vez, imitou o pio daquelas aves; distração, a que aliás não se furta quem por lá viaja, tão Instantes os motivos de instigação.
Foi com impaciência mais e mais crescente que percorreu as dezesseis léguas intermédias à fazenda do Pauda.
Ia com o coração cheio de apreensões e os olhos se lhe arrasavam de lágrimas, de cada vez que contemplava o melancólico buriti. Então pelo pensamento voava à casa de Inocência. Também, ali junto ao córrego em cuja borda se dera a última entrevista, se erguia uma daquelas palmeiras, rainha dos sertões. Que estaria fazendo a querida dos seus sonhos?
Que lhe aconteceria? E Manecão?! Já teria lá chegado?
Ao pensar nisto, aumentava-se-lhe a agitação e com vigor esporeava a cavalgadura.
Transformava-se para ele o caminho em dolorosa via, que numa vertiginosa carreira quisera vencer mas que era preciso ir tragando pouso a pouso, ponto a ponto.A majestosa impassibilidade da natureza exasperava-o.
Quando o homem sofre deveras, deseja nos raptos do alucinado orgulho, ver tudo derrocado pela fúria dos temporais, em harmonia com a tempestade que lhe vai no intimo.

—Meu Deus! murmurava Cirino, tudo quanto me rodeia está tão alegre e é tão belo! Com tanta leveza voam os pássaros: as flores são tão mimosas; os ribeirões tão claros... tudo convida ao descanso... só eu a padecer! Antes a morte... Quem me dera arrancar do coração este peso! esta certeza de uma desgraça imensa! Que é afinal o amor?... Daqui a anos talvez nem me lembre mais da pobre Inocência... Estarei me atormentando à toa... Oh não! Essa menina é a minha vida! é
o meu sangue... o meu farol para os céus... Quem ma rouba mata-me de uma vez. Venha a morte... fique ela para chorar por mim... um dia contará como um homem soube amar! . . .
Levantara Cirino a voz. De repente, deu um grande grito, como que o sufocava:
—Inocência!... Inocência!
E as sonoridades da solidão, dóceis a qualquer ruído, repetiram aquele adorado nome, como repetiam o uivo selvático da suçuarana, a nota plangente do sabiá ou a martelada metálica da araponga.
Como tudo, afinal, tem termo, alcançou Cirino, no quarto dia, a casa de Antônio Cesário. Acolheu-o este com toda a amabilidade e franqueza.

Inocência - Visconde de TaunayWhere stories live. Discover now