O leproso. — Interesse? Ah! nunca inspirei senão compaixão...
O militar — Quão feliz fora eu se pudesse dar-vos algum consolo!...
( Xavier de Maistre, O Leproso de Aosta).
Não devo ter sociedade senão comigo mesmo, nenhum amigo, senão Deus. Generoso estrangeiro, adeus, se feliz. Adeus para sempre! (Idem).A pessoa que chegara, bem que tivesse descavalgado, não se adiantou ao encontro do dono da casa. Pelo contrário como que recuou, conservando-se depois imóvel, encostado a um burrinho, cujas rédeas segurava.
De seu lugar, perguntou-lhe Pereira com expressão não muito prazenteiro:
—Então, como vai, senhor Garcia?
— Como hei de ir, respondeu o interpelado. Mal... ou melhor, como sempre. —Pois esteja na certeza de que muito sinto. —Está ai o cirurgião? indagou Garcia. —Não tarda a vir vê-lo ai fora... Olhe, é um instantezinho.
Palavras tão cruéis não pareceram fazer mossa ao desgraçado.
— Esperá-lo-ei com toda a paciência, replicou melancólico. —Já sei que volta hoje para casa, afirmou Pereira. —Volto. Se a noite me pegar em caminho, ficarei no pouso das Perdizes.
—E verdade: lá há uma tapera. Mas o senhor não tem medo de almas do outro mundo? Dizem que o tal rancho velho é mal-assombrado.
—Eu? exclamou o infeliz. Só tenho medo de mim mesmo. Quisesse um defunto vir gracejar um pouco comigo, e de agradecido lhe beijava os dedos roídos dos bichos. Olhe, Senhor Pereira, continuou com voz um tanto alta e agoniada, não levo a mal o senhor não me convidar para entrar em sua casa; não, no seu caso havia de fazer o mesmo.
—Oh! Senhor Garcia! quis protestar Pereira.
—Nada;... digo-lhe isto do coração... Na minha família sempre tivemos nojo de lázaros... Sou o primeiro... O senhor nem imagina... Vivi muitos anos meio desconfiado... A ninguém contei o caso... De repente, arrebentou o mal fora. Já não era mais possível enganar nem a um cego... Ah! meu Deus, quanto tenho sofrido!...
—Permita Ele, interrompeu Pereira em tom compassivo, que este doutor tenha algum remédio... Bem vê... às vezes...
—Curar a morféia? replicou Garcia com sorriso pungente de sarcasmo. Não há esse pintado... que em tal pense...
—Então para que quer ver o médico? — Só para uma coisa... Saber pelos livros que ele tem lido e pelo conhecimento das moléstias, se isto pega... É só o que quero... Porque então fujo de minha casa. Desapareço desta terra... e vou-me arrastando até tombar nalgum canto por ai... Dizem uns que pega... outros que não... que é só do sangue... Eu não sei...
É, abanando tristemente a cabeça, apoiou-se ao tosco selim. Depois, ergueu os olhos para os céus, e exclamou:
—Cumpra-se tudo quanto Deus Nosso Senhor Jesus Cristo houver determinado!... Se o médico me desenganar, não quero que a minha gente fique toda... marcada... Irei para São Paulo...
Pereira cortou este doloroso diálogo:
—Está bem, patrício Garcia, disse, vou já mandar-lhe o homem... espere um pouco. . .
E, entrando, reiterou o pedido a Cirino, que se demorara a receitar a Coelho umas beberagens de velame e pés-de-perdiz, plantas muito abundantes naquelas paragens, de grandes virtudes diuréticas e que deveriam ser empregadas um mês depois da aplicação do leite de jaracatiá.
—Ande, doutor, instou Pereira, vá lá fora ver o coitado do outro e despache-o depressa. Estou todo enfernizado por vê-lo no meu terreiro.
Cirino saiu então e, caminhando com lentidão, parou a alguns passos do mal-aventurado Garcia, cujo rosto repentinamente se contraiu enquanto tirava o chapéu com submissão e receio.
Vinha então a tarde descendo, e a luz do crepúsculo irradiava por toda a parte, tão melancólica e suave que, sem saber por que, a alma de Cirino de repente se confrangeu.
Com assombro o encarava o lázaro. Diante dele se erguera quem lhe ia apontar o caminho da eterna proscrição. Dos seus lábios ia cair a sentença última, irremediável, fatal!
Quanta angústia no olhar daquele homem! Que pensamentos sinistros! Quanta dor!
Também ficara ali atônito, boquiaberto, à espera que a palavra de Cirino lhe quebrasse o horroroso enleio.
—Então, disse este depois de breve pausa, que me quer o senhor? —Doutor, balbuciou Garcia... primeiro que tudo quero... pagar-lhe;... trouxe algum... dinheiro... mas, talvez... seja... pouco.Interrompeu-o Cirino:
—Não recebo dinheiro para tratar... da sua moléstia.—Quer isto dizer, replicou com acabrunhamento Garcia, que ela não tem cura... Eu bem sabia, mas. . é tão duro ouvir sempre isso!. . Olhe, o meu mal é de pouco . . . está em principio. Quem sabe... se o s. não conhecerá alguma erva?...
— Infelizmente, respondeu Cirino, nem eu, nem ninguém conhece essa planta...—Enfim!
E Garcia, fechando os olhos como que para concentrar as forças, continuou:
—Ah! doutor, eu sou um pobre homem... velho já cansado... Por que não me velo a morte em lugar desta podridão que me esta comendo as carnes?... Muito tempo a senti dentro de mim... Disfarcei, até ao dia em que minha neta... a filha do meu coração.. a Jacinta. . . ela mesma, mostrou certo receio de me abraçar . . Ah! senhor, quanto se sofre nesta vida!
E Garcia parou ofegante, empalidecendo muito.
—Dê-me água, exclamou ele, água... pelo amor de Deus!... Pudesse agora... ser o meu dia... A minha garganta... está que nem fogo! . . .
E agarrou-se aos arreios para não cair no chão. Cirino correu a buscar água.
—Onde há de ser? perguntou Pereira.
—Onde queira, respondeu o outro com pressa, veja que aquele cristão está sofrendo...
—Ah! leve a caneca de louça... Depois a quebraremos...
Com sofreguidão tomou o lázaro o vaso, bebeu de um trago e pareceu melhorar.
—Foi um vagado, disse reassumindo aos poucos a calma. Mas, como lhe contava, certeza tinha eu do mal. Agora, só quero saber uma coisa e vou-me de partida. Esse mal... pega, doutor?
—Pega, afirmou Cirino com tristeza. —E que me resta fazer?
—Pedir à Senhora Sant'Ana paciência e a Nosso Senhor Jesus Cristo. Garcia abanava a cabeça acabrunhado....que o proteja na sua vida de desgraças.
—Meu Deus, balbuciou o morfético a meia voz, dai-me forças... coragem para que eu faça o que devo fazer.
E, com súbita resolução:
—Cumpra-se a vontade do Altíssimo! exclamou, enfim. Doutor, obrigado! O pobre lázaro há de pedir ao Todo-Poderoso que neste mundo e no outro lhe pague as suas palavras de homem de letras... Adeus! Eu me vou para as terras de São Paulo... Talvez me junte à gente da minha espécie Adeus...E, a custo montando a cavalo, voltou-se para as pessoas que tinham de longe vindo assistir à consulta.
— Adeus, disse ele acenando com o chapéu, gente e patrícios. Senhor Pereira, senhor Coelho, mais senhores, adeus! Eu me boto de uma feita para lá das Parnaíbas...
Este sertão não me vê mais nunca!.
Acolheu o silêncio essas palavras de eterna despedida.
Garcia então, esporeando com o calcanhar o ventre da cavalgadura, a passo tomou rumo da estrada geral e sumiu-se numa das voltas do caminho, quando já vinha a noite estendendo o seu lúgubre manto.
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Inocência - Visconde de Taunay
RomanceA obra "Inocência" de Visconde de Taunay é considerada o melhor romance sertanejo do Romantismo. Nesta obra, Visconde de Taunay descreve o amor impossível de Cirino e Inocência, no qual despertaram um amor incondicional desde o primeiro enc...