Histórias de Meyer

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Grande felicidade é ter um filho prudente e instruído; mas, quanto e filhas, e par. todo o pai carga bom pesada. (Menandro, Os Primos).
Com a tarde voltaram Meyer, José Pinho e Pereira e, pouco depois pois deles, três avelhantados escravos; estes dos trabalhos agrícolas, aqueles de grandes excursões entomológicas.
Vinha o mineiro meio risonho e em altos gritos acordou Cirino, que, deitando-se a dormir, sonhara todo o tempo com a graciosa doente.
—Olá, amigo! olá, doutor! chamou Pereira com voz retumbante, isso e que é vida, hem? Enquanto nós trabalhamos, eu e o Mochu do José, você está nessa cama de veludo!...
—É verdade, concordou o moço, apenas os Srs. se foram, estendi as pernas e até agora enfiei um sono só...
—E o remédio da menina? perguntou Pereira abaixando a voz.
—Ora, senhor, e eu que me esqueci!... Não faz mal... se ela não teve febre... Ah! espere... agora me lembro!... Eu lho dei... estou ainda tonto de sono.
Riu-se Pereira.
—Estes doutores matam a gente, como se tosse cachorro sem dono... Num momento, lhes passa da cachola se deram ou não mezinhas e venenos a cristãos. .. Vendo que Meyer saíra da sala, mudou repentinamente de tom prosseguindo em voz baixa e muito rapidamente:

—Então, sabe que o tal alamão levou todo o dia, só querendo puxar conversa sobre a menina? —Deveras? —É o que lhe digo... E... eu com as mãos atadas por aquele oferecimento de levá-lo a comer lá dentro!... Nada, nem que desconfie e se arrenegue dos meus modos... não me pisa em quarto de família. . . Deus te livre! . . .
Com efeito, à hora da ceia, Meyer manifestou surpresa de comer na mesma sala; não que tivesse motivo para desejar outro qualquer local; mas, metódico como era, gravara na mente a promessa de Pereira e, por delicadeza, supunha dever lembrar-lha.
As desculpas que o mineiro apresentou foram arranjadas de momento e ajudadas vitoriosamente por Cirino, carregando este com a responsabilidade de haver recomendado à enferma muito sossego, quase completa solidão.
De modo muito expansivo se manifestou também o reconhecimento de Pereira.
—Estou conhecendo, disse ele em aparte e apertando a mão de Cirino, que o doutor é homem sério e com quem se pode contar... Deixe estar... o Manecão há de ser amigo seu... Isso há de sê-lo... Pessoas de bem devem conhecer-se e estimar-se... Ora, veja o tal cujo... que temível, heim?... Não faz mal, há de ter o pago.
Se Pereira se mostrava contrariado e inquieto, muito pelo contrário parecia o naturalista nadar em mar de rosas.
—Senhor doutor, declarou ele a Cirino à mesa da ceia, por muitos motivos estou em extremo contente com a minha estada aqui... Hoje achei mais bichinhos curiosos do que em todas as zonas por que tenho andado.
—Vosmecê nem imagina, interrompeu Pereira dirigindo-se para Cirino, o que faz este senhor quando está dentro do mato. Ainda há de quebrar o pescoço nalgum barranco a que se atire, pois caminha com as ventas para o ar... Não sei como não tem ambos os olhos furados... não repara em galhos nem em nada... só o que quer e agarrar anicetos... Já o avisei umas poucas de vezes; agora, sua alma, sua palma...
Judiciosas eram as advertências do mineiro e bem cabidas; tanto assim que numa das tardes seguintes voltou Meyer todo arranhado e com um gilvaz tão grande, que imediatamente deu nas vistas de Cirino.
—Que foi isso, Senhor Meyer? perguntou ele com admiração. O Senhor andou por ai afora aos trambolhões com alguma onça?
—Oh! não é nada, respondeu fleumaticamente o alemão. —E a sua roupa vem suja de barro... toda rota...
Desatou Pereira a rir.
—Isto são histórias deste homem... Bem lhe dizia eu que mais dia menos dia isso havia de acontecer. Meu amigo não sabe do ditado: ...Fia-te na Virgem e não corras, veras o tombo que levas!... Também foi um dia em que me ri a mais não poder. Tomei um fartão... Imagine vosmecê que o tal Senhor Meyer, como já lhe contei, anda pulando dentro da mata como se fosse veado mateiro... O José Pinho, que é mitrado, vai sempre pela estrada limpa... —Preguiçoso, atalhou Meyer a modo de observação. —Juízo tem ele, prosseguiu o mineiro: mas, como ia dizendo cá, o senhor com seus arrancos e saltos parece anta disparada. Em aparecendo bichinho voador, zás-trás que darás lá vai ele logo sem olhar para os paus, podendo pisar em cobras e espinhos, com aquela rede na mão, e tanto faz que engalfinha sempre algum animalejo... Hoje fui para a roça, e o homem furou o mato, enquanto José buscava uma sombrinha e entrou logo a roncar como um perdido...
—Eu, não senhor, protestou José Pinho, que queria ouvir a historia.
—Você sim, corroborou Meyer com severidade, preguiçoso!... Ande... dê cá a pita. —Pois bem, continuou Pereira, daí a duas horas voltou Mochu neste estado
pouco mais ou menos; mas trazia uma caixa cheia de bichos do mato... —Oh! perguntou Cirino, e são bonitos?
—Não há mais nada, suspirou Meyer com tom dolente, o trabalho ficou perdido!... Eu tinha apanhado cinco espécies novas... Uma queda...
—Deixe-me contar o caso, atalhou Pereira. Oh! eu ri-me... ri-me.
E, para confirmar a asserção, pôs-se novamente a dar gargalhadas, que foram acompanhadas por José Pinho e até por Meyer, da parte deste com menos expansão, contudo.
—Apareceu-me o Mochu muito contente com a sua caixa, como se tivesse o rei na barriga. Era uma imundície de besouros, cascudos e cigarras, que o senhor nem pode imaginar... Havia de tudo; depois, quando voltamos da roça, enxergou ele num pau podre um aniceto vermelho e foi correndo a apanhá-lo. Eu bradei-lhe: — Olhe, que ai tem barranco: a árvore é podre e oca, e vosmecê rola pelo despenhadeiro, que nem a sua alma se salva. — Qual! O homem é teimoso, como um cargueiro empacador... Eu gritava-lhe: —Tome tento, Mochu!—Sem atender a nada, começou a caminhar em cima da cipoada que cobria a boca de um precipício, fundo como tudo neste mundo... Quando ia botar a mão no tal bicho encarnado, encostou-se ao pau e... zás!... afundou-se, dando um grito esganiçado que parecia de cotia. Mal teve tempo de agarrar-se aos cipós e ia ficou entre a vida e a morte, chamando Juque, Juque!... Eu, quando vi isso, mandei a toda pressa buscar à roça uma vara comprida e, se ela não chega logo, o Senhor Meyer e toda a sua bicharada rolavam de uma vez por aqueles fundões.
—Não, retificou o alemão, bicho rolou; caixa abriu e tudo lá se foi no fundão... —Pois bem, o Mochu segurou-se com unhas e dentes ao pau e nos puxamos devagarinho, devagarinho, com um medo, um medo!... Maria Santíssima! . . .
Fazendo breve pausa:
—0 mais engraçado ainda não chegou, avisou o mineiro: Ah! vosmecê vai tomar uma boa data de riso. Quando o Mochu ganhou pé em terra, pôs-se a pular como um cabrito doido, por aqui, por acolá, pulo e mais pulo, e gritando como se o estivessem esfolando... Estava .. ah! meu Deus!... estava cheio de formigas novatas!
— Sim, exclamou Meyer com desespero, formiga de pau podre!... mein Gott ... Eu rasgo a roupa... eu pulo... eu gemo... fico nu como quando minha mãe me botou no mundo!... Horrível Formiga do diabo!.... Faz calombo em todo o meu corpo. . . Muita dor!
Com reiteradas e estrondosas gargalhadas acolheram Pereira, Cirino e José Pinho essas enérgicas imprecações.
—Poderá isso, observou o mineiro, curá-lo da mania de não ouvir os outros que conhecem as coisas.
E voltando-se para Cirino:
—Verdade é que o corpo dele... Que corpo, senhor doutor, tão arvo!... ficou todo empolado que foi preciso esfregá-lo com folhas de fumo. Depois, tomou um banho no ribeirão...
—Tudo estava muito bem, observou Meyer, se caixa não abre e atira no buraco meu trabalho...
—Ora, ficará para amanhã, consolou filosoficamente o camarada.
Pereira, acalmado o frouxo de riso, aproximara-se de Cirino e lhe falava a meia voz:
—Ah! doutor, tive uma vontade de deixar este alamão sumir-se no socavão!...
Se não fosse meu hóspede, enfim, e recomendado de meu mano, palavra de honra pinchava-o de uma vez no inferno...
Não sou nenhum pinóia...
—Mas por quê? indagou Cirino simulando admiração...
—O senhor ainda me pergunta?... Porque o homem não me faz senão falar em Nocência... Outra vez me disse que ela era muito bonita e mil coisas.. perguntou se estava casada, se não; que era preciso casar as mulheres para bem delas. Eu lá sei o que mais?... Isto é um bruto perdido... um namorador!... —Qual, senhor Pereira!...
—É o que lhe digo!... Por acaso sou cobra de duas cabeças(4) que não veja?... Ah! que peso uma filha! Ah! E então uma menina que já está apalavrada... Isto é uma anarquia! Que diria meu genro, o Manecão?...
—Não poderá dizer nada, retrucou o moço. E que diga, não faltará quem queira sua filha...
—Louvado Deus, não decerto! Eu é que não quero que ela ande de mão em mão... Ou casa com o Doca ou...
— Ou... o quê? perguntou Cirino com inquietação, mas fingindo pouca curiosidade.
—Ou mato a quem lhe vier transtornar a cabeça .. Comigo ninguém há de tirar farofa!... E não hei de ter mil cuidados quando vejo este estranja estar com suas macaquices a dar no fraco das mulheres ?
—Por ora, nada fez ele...
—Por ora .. só leva a falar na pobre menina, que a Srª Sant'Ana guarde de todo o mal!... Pudesse eu adivinhar, e macacos me mordam, se punha os olhos em cima de Nocência. Nem que viesse com cartas e ordens do Senhor D. Pedro II .

Chamei o José Pinho, prosseguiu ele em voz baixa e dei-lhe uns toques. — Então, disse-lhe eu, seu amo é o diabo com mulheres, heim? Ele, que é muito ladino, respondeu-me logo. —Nhor-não. —Assuntei a embromação.—Qual, você, carioca, tem levado areia nos olhos. — Eu?... não é capaz.— Então você não tem visto o que faz seu amo? — Tem sido um santo, retrucou o espertalhão. No Rio, sim. —Na Corte?—Nhor-sim, na Corte. Ia todas as noites a uma casa de bebidas, assim uma espécie de venda de muito luxo e lá estava horas perdidas petiscando e conversando com senhoras muito bonitas, bem limpas... algumas com o pescoço e os braços todos à mostra...
—Contou-lhe isso? atalhou Cirino com alguma dúvida e sobressalto. — Contou, afirmou Pereira com furor.
Vejam só que homem, heim? É um mequetrefe!... Esta noite e dora em diante, venho dormir nesta sala a ver se ele se mexe da cama. Ah! se eu pudesse!... caia-lhe de calaboca em cima, que lhe deixava as costelas em. lascas.
Acabavam as imprudentes histórias de José Pinho de pôr a ultima pedra no edifício da desconfiança que tão depressa erigira a imaginação de Pereira em desconceito de Meyer. O que nelas havia de verdade, eram apenas algumas horas de lazer, consagradas, durante a estada no Rio de Janeiro, pelo naturalista ao consumo de grandes copázios de cerveja no café Stadt Coblenz, e nas quais entretivera risonhos, bem que inocentes colóquios, com pessoas do sexo amável, freqüentadoras daquele estabelecimento e de costumes não lá muito rigorosos.

Inocência - Visconde de TaunayWhere stories live. Discover now