IDÍLIO

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Mas, que luz e essa que ali aparece naquela janela? A janela é o Oriente e Julieta o Sol. Sobe, belo astro, sobe e mata de inveja a pálida lua.
(Shakespeare, Romeu e Julieta, Ato II). Entretanto, desde algum tempo, sentia-se Virgínia agitada de mal desconhecido... Em sua fronte, não pousava mais a serenidade, nem o sorriso lhe pairava nos lábios... Pensa ela na noite, na solidão, e logo devorador a abrasa toda.
(B. de Saint-Pierre, Paulo e Virgínia). Decorreram sem novidade dias e dias uns após outros; Cirino diagnosticando e curando ou melhor, receitando; Meyer aumentando cada vez mais a sua bela coleção entomológica, sempre feitorizado por Pereira, que cautelosamente tratava de mantê-lo no suspeito círculo da sua apertada vigilância.
Confidente de todos os infundados e mal empregados receios era Cirino.
—O alamão, dizia o mineiro, não me deixa pôr pé em ramo verde, mas também trago-o vigiado que é um gosto... Se desconfiasse, teria medo até da sua sombra... Estou em brasas... Não sei por que não chega o Manecão Doca... Quero arriar a carga no chão... Agora, mais do que nunca, devo casar Nocência... Estas mulheres botam sal na moleira de um homem. Salta! E ainda isto tudo não é nada. —Então espera muito breve o Manecão? perguntou o outro com ansiedade. —Não pode tardar... por estes dois ou três dias quando muito... Vem de Uberaba e sem dúvida por lá arranjou todos os papéis... Dei a certidão do meu casamento... a do batismo da pequena... e adiantei dinheiro para as despesas... bem que ele refugasse meio vexado.
— Então está tudo decidido? perguntou Cirino com vivacidade.
—Boa dúvida!... Já lhe tenho dito mais de uma vez. Hoje é coisa de pedra e cal... Se até trato o Manecão de filho... A honra desta casa é também honra dele. —Mas sua filha? — Que tem? —Gosta dele? —Ora se!. . Um homenzarrão... desempenado. E, quando não gostasse, é vontade minha, e está acabado. Para felicidade dela e, como boa filha que é, não
tem que piar... Estou, porém, certíssimo de que o noivo lhe faz bater o coração... tomara ver o cujo chegado!
Já nesse tempo, como dissemos, Inocência de todo se restabelecera, ainda que Cirino tivesse feito quanto possível render a enfermidade. Mas, quando o rubor da saúde voltou à acetinada cútis da sertaneja e 0 vigor ao esbelto corpo, não houve pretexto a que se apegar, e as entrevistas curtas e graves de médico foram cortadas, até mesmo para não desviar a atenção de Pereira da pessoa de Meyer.
Com o coração, pois, partido de dor, declarou que os e eus cuidados e presença se tornavam completamente desnecessários.
Seguiram-se então semanas inteiras, sem que pudesse por os ansiosos olhos na formosa namorada, e por tal modo se exacerbou a sua paixão que, para encobri-la c disfarçar a excitação nervosa, a falta de apetite e palidez extrema, teve que recorrer a desculpas de moléstia; caiu realmente doente.
A incerteza em que se via, sem, pelo menos, saber se o seu afeto era ou não correspondido, dava-lhe acessos de violenta angústia, que a desoras tocava às ratas da exasperação.
Uma noite, em que havia luar embaciado por ligeira bruma, tomou a sua aflição tal violência que ele decidiu fugir daquele local de sofrimentos e incertezas, logo na manhã seguinte.
Assente uma vez nesta resolução, ergueu-se do leito em que jazia prostrado pelo mais cruel desalento e, com algum custo, saiu para o terreiro, abrindo cautelosamente a porta da casa, a fim de não acordar os companheiros de quarto. Uma vez fora, sentou-se num tronco de madeiro e ali ao ar fresco e acariciador da madrugada, entrou com mais tranqüilidade a pensar no caso.
Seria uma hora depois de meia-noite.
Estavam os espaços como que iluminados por essa luz serena e fixa que irradia de um globo despolido; luz fosca, branda, sem intermitências no brilho, sem cintilações, e difundida igualmente por toda a atmosfera.
Haviam j á os galos cantado uma vez, e, ao longe, muito ao longe, de vez em quando, se ouvia o clamor das anhumapocas. Levantou-se de repente Cirino.
Depois de alguma vacilação, deu uma volta por toda a habitação, pulando os cercados, e tomou o ramo do frondoso laranjal, a cuja espessa sombra se abrigou por algum tempo. Achegou-se, em seguida, à cerca dos fundos da casa e parou no meio do pátio, olhando com assombro para uma janela aberta.
Um vulto ali estava!... Era o dela; Inocência... Não havia duvidar.
A principio, nenhum movimento fez; mas, depois, lentamente se foi retirando e aos poucos fechou o postigo.
Cirino deu um só pulo e de leve, muito de leve, bateu apressadas pancadas na tábua da janela.
—Inocência!... Inocência!... chamou com voz sumida, mas ardente e cheia de súplica.
Ninguém lhe respondeu.
—Inocência, implorou o moço, olhe... abra, tenha pena de mim... Eu morro por sua causa...

Inocência - Visconde de TaunayOnde histórias criam vida. Descubra agora