Incompreensível

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Nairobe passou vários dias pensativa.

Talvez a lâmpada da cozinha queimada, talvez a discussão com uma das coleguinhas de classe. Mas ela sabia. Eram aqueles olhos cinzas e opacos que seguiam sua mãe com um estranho tipo de... Qual seria a palavra? "Devoção" parecia simples.

Era o olhar de um capacho contente com a profissão, o que ficava mais assustador recoberto pela postura beligerante que ele sempre mantinha; seu ar também de pouco caso, o cigarro sempre aceso e graciosamente pousado entre os dedos longos e torneados. Tudo em Rodolfo deveria ser bonito. Menos aos olhos de Nairobe.

Para ela ele era apenas... Assustador.

Ela percebera que Rodolfo dirigia agora um delicado desprezo mais a ela que ao irmão. Como se ele a detestasse por ter descoberto seu segredo.

A mãe não mudara em nada. A mesma tensão ao voltar para casa, cedendo espaço àquela delicada cerimônia de todos os dias.

Nairobe se sentia Amada. Porém, um tanto desprotegida.

Um outro fato inusitado ocorreu na semana que se seguira.

Enquanto a mãe terminava de lavar a louça e jogar um pouco de água nos vasinhos sobre o parapeito do vitrô —— todos os vasos de sua mãe continham pequenos tronquinhos retorcidos, sem folhas ou brotos, mas que pareciam se modificar de um dia para outro —, uma pomba chegou e pousou na mão magra e ainda mais pálida à luz do dia.

Sua mãe não teve um sobressalto sequer. Enxugou a mão livre na barra da camiseta e acariciou a ave, que voou e pousou no encosto de uma das cadeiras da cozinha.

Era uma pomba incrivelmente branca. Não como as asas de Rodolfo, que reluziam douradas, ou as de Anna que pareciam de neve. Era uma cor que não existe. Um branco absoluto como feito apenas para cobrir aquelas penas, e havia também algo de diferente nelas.

A partir daquele dia, a ave passava grande parte do tempo, ou pousada no ombros de sua mãe, ou nas redondezas do edifício onde moravam.

Nem seu irmão, nem sua mãe demonstravam espanto ou dúvida. E Nairobe teve a impressão de ouvir o pássaro conversar com sua mãe, naquele idioma estranho no qual ela possuía um nome. Mas Nairobe era criança e sempre desconfiava de suas primeira impressões.

Até mesmo Rodolfo, nos jantares aos sábados, não pareceu estranhar a presença da ave. Pareceu não estranhar, mas seus olhos cintilaram de ódio ao se dirigirem ao pássaro.

Nairobe não conseguia compreender como alguém poderia desgostar tanto de um animal. E também sentia um desconhecido mal estar, como se sua realidade houvesse sido subvertida.

Mal sabia ela que seus problemas apenas começavam, anunciados pela chegada daquela pomba.

Uma pomba de penas encaracoladas.

NairobeWhere stories live. Discover now