Inigualável

23 9 2
                                    

Sua mãe estava separando o feijão e já se preparava para refogar o tempero.

Nairobe sempre gostava de se aproximar lentamente e farejar o ar impregnado dos aromas de cominho, orégano, salsa e manjericão; o alho fritando na panela e o som da colher raspando o metal enquanto a mãe preparava o almoço.

Um ritual.

A comida ali era sagrada.

Naquele dia, ela demorou um pouco mais para chegar até a cozinha e ouviu a voz de sua mãe, rindo.

Rindo não, gargalhando.

Nairobe nunca ouvira aquilo, e para transformar sua surpresa em total espanto, escutara uma segunda voz. Um barítono grave. Uma voz de homem.

Eles falavam coisas que Nairobe não entendia. Não era seu idioma, e também era.

Ela sentia que se esquecesse de tudo o que já aprendera, se deixasse de lado quem era, tudo o que vivera e seu corpo, compreenderia perfeitamente o que estavam dizendo.

Aquela língua estava presa dentro dela. Não, fazia parte do que ela era. Seus órgãos, o intestino, seu fígado, seus ossos e veias falavam aquele idioma. Não Nairobe. Ela não compreendia nada.

Ou quase nada.

Algo lhe subiu à mente — sim, porque parecia ter passado como uma onda por seus pés, pernas, joelhos, ter escorregado por sua barriga e achado espaço entre as costelas até correr gelado para sua mente —, algo como "Você é linda separando feijão".

Linda? Aquilo fora dito para sua mãe...

Naquele impulso (que ela nunca compreendia) avançou e viu sua mãe sentada à mesa, os potes ao seu lado e alguns grãos ainda restantes.

Linda?

Nairobe amava sua mãe, mas nunca pensara além disso.

Os olhos cansados, as asas apavorantes, a roupa surrada comprada em brechós e tudo aquilo que era sua mãe... "Linda" nunca fizera parte do pacote.

Mas.

Olhando da porta, sem ser notada, observando sua mãe com um pano de prato sobre o ombro, Nairobe vislumbrou uma criatura diferente. O cabelo fino esvoaçando, escapando de um coque improvisado, os fios escuros — refletindo a luz do sol que entrava pela janela sobre a pia — se tornavam pequenos filamentos multicoloridos. Havia um arco-íris que estava e não estava lá.

Os olhos estavam sem o alo arroxeado e ela parecia nova, fresca, como alguém muito jovem no seu primeiro dia de férias.

Os olhos.

Nairobe prendeu a respiração.

Sua mãe sempre tivera olhos escuros e graves até aquele momento. Nairobe não podia distinguir a sensação que a impedia de se mover.

Os olhos eram violeta.

Nem roxos, nem lilases. Eram violeta como flores claras num gramado negro. Grandes, brilhantes. Olhos violeta. Nada tinha aquela cor exatamente. E eram tão lindos. E sua mãe era tão linda; ela sorria e seus dentes pareciam cantar canções relatando antigas paixões de um povo das montanhas.

Sua mãe parecia uma joia...

Delicadamente lapidada.

Nairobe percebeu os cabelos mudando de cor conforme ela sorria, e ainda não conseguia decidir se achava que sua mãe deveria sorrir mais.

Se aquela era sua aparência ao sorrir, seria completamente impossível manter-se alheio a ela. Seriam descobertos... Essa foi a primeira vez que Nairobe pensou sobre isso. Mas não a última.

Poderia passar o dia ali, talvez um ano, talvez uma década ou quem sabe duas, porque tudo a maravilhava. Só conseguiu pensar novamente quando escutou a voz de homem, ainda no idioma secular.

Ela olhou ao seu redor, aflita. Não havia ninguém com ela. Apenas...

Nairobe amava os animais, mas sabia que eles deveriam ser mantidos nos lugares adequados.

Empoleirada sobre a mesa estava a tal pomba de penas encaracoladas.

Nairobe sentiu um ligeiro incômodo e pensou se o feijão estaria próprio para o consumo. Mas sua mãe... Sua mãe sabia o que fazia, não?

Deu dois passos e os olhos violeta se fixaram nela. Nairobe abriu a boca e assim ficou.

— Nairobe, está com fome?

O cabelo estava voltando a ser escuro, mas os olhos continuavam violeta.

A menina se forçou a responder:

— Um pouco, mamãe.

— Em pouco tempo estará tudo pronto — a mãe respondeu, se levantando com a bacia de grãos separados.

— Mamãe?

A mãe se voltou, os olhos já estavam negros, mesmo que descansados.

— Sim, Nairobe?

— Ha... Não há problema da pomba estar pousada na mesa?

— Nairobe, não se preocupe, eu sei me portar — a voz do homem respondeu. Mas não havia homem.

Nairobe teve um sobressalto.

— A pomba fala?

— Hei, mais respeito com a pomba — a mãe disse firme, sem estar zangada de fato —, ela é o seu pai.

NairobeWo Geschichten leben. Entdecke jetzt