À Frente

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Do outro lado da mesa, a mulher se ajeitava em seu jaleco

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Do outro lado da mesa, a mulher se ajeitava em seu jaleco.

― Eu sei que deve ser difícil para o senhor entender isso...

O homem sentado à frente dela assentia devagar, pouco inclinado a olhar para a doutora, mas também não muito instigado em fitar a cama atrás de si.

― A senhora pode ir direto ao assunto. ― pediu, antes de completar com um pigarro. Por alguns instantes, apenas o barulho costumeiro do movimento do lado de fora da janela de vidro impedia um silêncio genuíno.

― Seu filho apresenta, hã, fortes tendências a sociopatia. ― ela disse, o desconforto transpassando em cada piscada de olho.

Fitando-a, entretanto, Túlio também demonstrava desconforto. Por segundos, o homem preferia observar apenas a rotina sem parar dos carros que transpassavam lá embaixo pela janela e esquecer que tudo aquilo à sua volta era um consultório. Túlio poderia estar dirigindo aquele Gol vermelho que avançava o sinal, quem sabe. Ou então poderia estar esperando o sinal fechar enquanto conversava tranquilamente no celular, como fazia um jovem na calçada. Fosse ele um grande ator e poderia muito bem fingir que a mulher que o encarava nem estava falando com ele, assim como a criança deitada na cama atrás de si nem era o seu filho. Era fácil, se ele só tivesse que fingir.

Entretanto, de tudo o que Túlio poderia fingir, aquele último detalhe ele jamais poderia descartar tão irresponsavelmente de sua vida. Ele tinha sim um filho e seu filho estava bem ali, pertinho, de olhos fechados e consciência limpa. Era bobeira pensar o que o homem estava pensando, bem sabia; havia algo acontecendo e ele precisava cuidar para que algo não acontecesse num futuro próximo.

Uma pena que algo tenha acontecido, é claro. Mas Túlio jamais teve como prever. Não inteiramente, por certo.

― E o que isso quer dizer? ― indagou, aflito.

Enrolando com a língua, a doutora parecia deveras séria.

― Quer dizer que o seu filho pode vir a se tornar um sociopata, é isso o que quer dizer. ― tentando ser o mais delicada o possível, a mulher suspirou. ― Olha, é tudo muito subjetivo ainda. Não podemos ter certeza de nada. O que eu tenho notado no comportamento do seu filho é que nós precisamos ficar de olho nele, entende? Precisamos cuidar dele. Ainda podemos impedir que...

― Que ele seja um completo desmiolado que mata as pessoas por puro prazer? ― o homem interrompeu-a, levando um choque de realidade. ― Um desses loucos que sequestram pessoas e depois tiram a própria vida? Acha que meu filho pode se tornar alguém assim?

Engolindo em seco, a doutora soltou mais um suspiro, sem tirar seus olhos dos olhos do homem sentado à sua frente.

― Eu não estou dizendo isso.

Mas ao ouvir aquilo, Túlio nada pôde fazer senão aumentar o tom de voz.

― Então o que está dizendo? ― perguntou, fazendo com a pergunta algo que a tornou muito mais incisiva e agressiva do que o necessário. Algo doía dentro do peito de Túlio, porém. Algo que poderia estar prestes a acontecer, segundo aquela conversa.

― Estou dizendo que o Thiago pode ou não vir a se tornar uma dessas pessoas. E qualificá-las todas como... bem, serial killers não é exatamente correto. Na maioria dos casos, sociopatas são apenas pessoas que, hã, se excluem da sociedade...

As sobrancelhas de Túlio remexiam-se, inquietas.

― Então o mínimo que pode acontecer é o meu filho se isolar do resto do mundo?

Outra vez, a doutora engoliu em seco. Túlio podia sentir as palavras que iam descendo pela garganta dela, desaparecendo do mundo real e voltando para o inconsciente. Ele também podia sentir algo rítmico tocando.

A doutora, piscando forte, pareceu decidir tomar um caminho mais direto e realista.

― Sendo bem franca, essa é uma possibilidade sim. Mas isso também pode não acontecer. A mente humana é algo muito complexa, senhor. Como eu já disse, a condição futura do seu filho não é algo que nós podemos facilmente prever.

O peito de Túlio balançava com aquele algo rítmico tocando. Era o coração dele, o que o martelava. Tensão. Dor. Medo. Muito, muito medo. E o olhar complacente da doutora que mal disfarçava a preocupação e a pena que sentia pelo homem sentado à sua frente. O pai sentado à sua frente. O garoto deitado atrás do pai.

― Meu filho... ― o homem encerrava as próprias palavras, desconectado do mundo demais para que pudesse continuar na realidade. ― O que está acontecendo com ele?

Alinhando as costas no encosto da cadeira, a doutora fitou Túlio com seriedade.

― É como se Thiago vivesse no próprio mundo. As coisas, na cabeça dele, funcionam de uma maneira diferente. Ele não vê o mundo do jeito que nós vemos, logo ele interagirá com ele ao seu próprio modo. ― explicou a mulher, alisando a mesa com o dedo indicador.

Assentindo com a cabeça, Túlio piscava os olhos, absorvendo as informações e lutando contra a dor paterna que fazia seu coração pulsar mais forte. O garoto na cama parecia tão inofensivo e calmo; era impossível, na cabeça do homem, que ele poderia causar qualquer que fosse o mal a outras pessoas. Mal sabia Túlio, contudo, o que ainda iria ocorrer alguns anos depois. Ninguém pode prever o que está à nossa frente, ainda que nós achemos ser capazes.

Foi quando um barulho chamou a atenção dos dois adultos ali dentro e a porta do consultório se abriu. O homem abriu um sorriso. Seria um dos últimos em muito tempo.

 Seria um dos últimos em muito tempo

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