Capítulo 6 - A cruz é muito pesada II

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2. Vento suave. Mata aberta. De onde está pode ver algumas pedras que contornam o rio, isolando a água, como uma enorme poça. A superfície é calma, refletindo um céu azul, de raras nuvens.
Vento suave, mata aberta. Mais à frente, a queda d'água – cujo som parece música aos seus ouvidos. Dali sai um frescor, um perfume sem perfume da natureza mais gentil. Quando puxa aquele ar puro, percebe que não existe mais nenhuma cobra em seu pescoço, nem mesmo um hábito. O padre está nu.
Alguns pássaros cuja origem ele desconhece cantam alguma melodia daquela terra. Tentando identificar de onde vem o canto, vislumbra uma entidade de pele rubra e cabelos envernizados – uma índia tupiniquim assoviando para si mesma num ritmo plácido. Repara que ela toca a água com os pés. Os pés estão descobertos, assim como o resto do seu corpo. Não há nenhum sinal de que ela estivera vestida antes. Mas isso, estranhamente, não o assusta. Os pássaros fazem um coro conduzido pelo sopro da mulher. Tudo é música, tudo é encantamento.
Ela ainda não percebeu a presença dele no ambiente. Talvez esteja fingindo que está só. Talvez não se sinta só.  Ela sabe que é rainha daquele lago. Não é a natureza que lhe premia com a beleza, é ela que toca a água e lhe dá as propriedades mais castas. Há uma comunicação entre a índia e o rio que faz com que seus seios se enrijeçam. Neste lugar, nada está parado. E o vento balança suavemente seus cabelos. Tudo é dança, tudo é encantado.
A pele dela brilha como se antes de chegar ali houvesse se banhado em algum óleo sagrado, num ritual desconhecido. Suas curvas são a própria fruta da árvore do pecado: lisas, vermelhas e arredondadas. Ela mede a temperatura da água e parece desencorajada; mas, depois de visualizar a cachoeira, um tipo de energia faz com que tome impulso e salte de uma vez. Ela desaparece na água.
Ele, um tanto surpreendido pelos movimentos dela, olha para as próprias mãos e braços: são brancas e cheias de pelos. Mas não é só isso. O corpo dele está quente novamente, com uma pulsação diferente. Está excitado. A cena lhe contagiara, enchendo suas veias de um fogo vivo. Agora é um homem descobrindo o novo mundo.
Ela, no entanto, não volta à superfície. Ou pelo menos não está mais no campo de visão dele. As águas podem tê-la levado para onde ele não alcançaria. Ela pode ter se chocado contra uma pedra. Ou ter virado pedra. Ele talvez nunca mais volte a vê-la.
Engano seu. Os pássaros continuam cantando. Ela ainda existe.
Ele dá alguns passos na direção do lago, que parece não fazer mais nenhum movimento. O som dos pássaros, entretanto, se mistura a uma voz muito melodiosa, ainda que num volume quase inaudível. Ele se aproxima mais do lago, onde não vê nenhum sinal dos cabelos negros que a pouco submergiram. Ela já deve ter voltado à superfície e agora canta. A voz, para seu espanto, vem de dentro da água, como se as pedras fizessem um coro distante. A excitação aumenta.
Ele não quer entender o fenômeno que embaraça seus sentidos. Apenas quer voltar a ver a beldade do lago. Enquanto olha para suas profundezas, pensa que um rabo de peixe fez um estalo na superfície da água e já está fora das suas vistas.

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