Capítulo 10 - O ataque IV

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Escondido estrategicamente sobre os galhos da árvore, Piquerobi mirava a aldeia. Possuía dezoito flechas no seu compartimento de guerra. Deveria, portanto, economizar, selecionando muito bem seu alvo. A distância em que estava era segura; contudo, era desafiadora para um arqueiro. Ele escolhera aquela árvore pela altura, imaginando que teria alguma visão da aldeia. E estava certo.
A mata em que viviam era muito densa, de maneira que muitas plantas e árvores menores obstruíam a entrada da aldeia. Aquilo protegia os tupinambás de ataques externos. Mas Piquerobi já tinha escalado todas as árvores em torno da sua casa. Ele sabia qual poderia oferecer uma mira razoável, sem ser visto.
O índio calculou que deveria acertar, inicialmente, membros de uma tribo invasora; caso não houvesse invasor, todos os estupradores – o que, para ele, era sinônimo de português. As estrelas o ajudariam.
Desde que os colonos haviam se fixado em Piranapiacaba, dominaram a aldeia de Piquerobi. Os brancos possuíam arma de fogo, o que não era suficiente para se manter na tribo, mas impressionava alguns integrantes. Aqueles homens vestidos de tecidos coloridos pareciam interessados apenas nas mulheres, no fumo e nas cachoeiras. Isso não oferecia muito perigo para o cacique da aldeia, Tibiriça, de maneira que a cada dia mais pareciam amigos, trocando objetos. Alguns meses depois, seus companheiros estavam algemados e derrubando árvores.
No fim ao cabo, não fora a força que garantira a permanência dos colonos, mas a estranha intimidade que compartilharam com o cacique e outros índios.
Piquerobi nunca aceitou muito bem a presença dos brancos, principalmente a dos que em pouco tempo descobriu se identificarem como padres. Esses faziam para os seus irmãos promessas que pouco lhe interessavam. Algumas delas ele sequer entendia.
Do alto da árvore, Piquerobi avistou sua aldeia. Seus amigos e seus inimigos pareciam tomados por algum espírito. Mas a visão do guerreiro aos poucos escurecia. O que estava acontecendo? Era o medo? A raiva? Olhou para cima: as estrelas haviam se escondido e o céu rapidamente se preparava para lançar água à aldeia.
Piquerobi precisava acostumar suas vistas à escuridão que se instalara. Só assim poderia mirar a aldeia. Permaneceu, por isso, no alto da árvore, tentando detectar os movimentos que estavam no seu campo de visão. Logo enxergaria alguma coisa. Tentava afastar a qualquer custo a imagem de seu irmão sendo atacado. Deveria ter investido em sua defesa, mas não sabe porque tomou o caminho contrário. Preferia acreditar que seu gesto era fruto de uma mente guerreira e estratégica, que não reagia no impulso. Mas seu irmão talvez já estivesse morto. A concentração estava falhando. É preciso salvar algum familiar ainda. Alguém da aldeia devia estar clamando por ajuda neste momento!
O índio afiou seu olhar. A arma já estava preparada. Em pouco tempo, conseguiu visualizar com mais nitidez a aldeia. Os mortos-vivos já haviam se dispersado para a mata. Não havia ninguém de pé. Pelo menos ninguém que ele fosse capaz de ver. Concentre-se! Eles tem que estar lá ainda! Quem são?
Viu um homem vestido, caminhando de forma estranha. Lembrava em algum nível os movimentos que ele tinha visto rapidamente quando ainda estava na aldeia. Mirou cuidadosamente. Era um padre. Bom sinal.
Soltou a flecha.
Do outro lado, a flecha não acertou o alvo. Mas o padre ia perder os sentidos. Seus pensamentos estavam se anuviando, como se ele estivesse na entrada do paraíso. Entrar no paraíso devia ser assim, uma ausência de pensamentos. Como podia ser assim? Os índios é que não tinham pensamento. Eles que tinham a mente vazia! Como o paraíso poderia cheirar insuportavelmente a vômito e carne podre? A vida do padre se encerra logo após proferir suas últimas palavras do breve sermão para os mortos e degenerados.

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