Capítulo 8 - A viagem

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O padre Anchieta já havia superado o primeiro impacto em relação a gagueira de padre Nóbrega. Os dois irmãos estavam juntos na mesma missão e Anchieta aprendera muito com o amigo, sobretudo acerca da pedagogia do amor. A doutrinação dos gentios exigia deles muita disposição. Nóbrega já havia fundado vários colégios desde que chegara à colônia e agora tratava de fiscalizar o andamento de alguns deles.
Na época em que desembarcou no Novo Mundo, Nóbrega se assustou com o estado de depravação moral em que se encontravam as vilas. Os colonos, em vez de civilizar os selvagens, haviam se deixado influenciar pelos hábitos dos que não tinham deus. Os brancos se despiram como os índios, despudoradamente. Em suas cartas para a corte portuguesa, o padre denunciava cada um dos colonos que não seguiam os protocolos da Santa Madre Igreja. O jesuíta estava ali para cobrir a todos, com o tanto de algodão que aquela terra podia prover. Nenhuma vergonha ia passar à vista.
Faziam parte da expedição ao campo de Piratininga os dois padres, alguns soldados colonos, seis tupinambás catequizados e um menino órfão que viera de Portugal para ser educado pela Companhia. O órfão se chamava Antonio e logo seria enquadrado como missionário. Padre Nóbrega frequentemente enviava relatórios ao seu orientador detalhando o desenvolvimento dos órfãos que ficaram sob os cuidados dos colégios jesuítas. A maioria dos meninos não apresentaram bons resultados, mas Antonio estava indo bem, de acordo com os preceitos do padre, e logo poderia colaborar mais ativamente na doutrinação dos gentios.
Depois de quatro dias de caminhada, vislumbraram, ainda um pouco distantes, o que deveria ser o campo de Piratininga, mas o jovem padre Anchieta estava muito desconfiado. O mensageiro que pediram para ir a frente para avisar sobre a chegada da expedição não dera nenhum sinal e na trilha não esbarraram com nenhum gentio ou colono. Continuaram. Cada um nos seus pensamentos e passos.
Sonhos...
Nóbrega não costumava pensar neles durante o dia. Desde que cruzara o oceano, não tinha mais imagens da terra natal e sonhava apenas com o cenário da colônia, com questões da colônia. Era como se contasse com a possibilidade de não voltar mais. O que haveria para ele em Portugal? Sentira-se expulso do ventre materno desde que fora reprovado nos exames para a cátedra da Universidade. Por duas vezes. Seu texto era brilhante, disseram eles, mas tinha uma dicção que não servia ao ensino.
Todas as suas obras na colônia dariam conta de enterrar essa derrota?
O órfão Antonio, que se adiantara, voltava correndo.
Aumentando as desconfianças de padre Anchieta, a criança comunicou-lhe que a vinte metros de onde estavam havia uma carcaça humana.
Padre Nóbrega não parecia incomodado com a notícia. A morte, há algum tempo, lhe parecia indiferente.
-- Senhor, havia também um baú.
-- Um b-baú? -  agora quem gaguejava era Anchieta. O jovem padre estava assustado -- Ao menos conseguiremos identificar o corpo.
- E a sua a-a-alma entregaremos a Deus. -- Nóbrega encarou o outro padre - Irmão, escutes: aqui, os homens estão sempre em discórdia e guerra. Nossa m-m-m-m-maior missão é trazer o evangelho para os seus corações. O amor e o batismo vão civilizá-los.
Anchieta fez um gesto de concordância, mas sem conseguir dissipar o temor.
O corpo estava agarrado a galhos, em cima de uma pedra. Próximo dele, um córrego. Ele não estava exatamente na trilha, mas o menino o encontrara seguindo o som da água. A intenção era saciar a sede e reabastecer seu cantil. Quando chegou ao córrego, Antonio se deparou com o baú e o corpo.
Não havia nenhum sinal de contato com os nativos.
- Parece um marujo que morreu doente -- deduziu Anchieta.
Padre Nóbrega se aproximou do corpo para fazer um sinal da cruz na testa ossuda. Um dos colonos que acompanhava a expedição, no entanto, cochichou para outro:
- De onde ele veio?
Padre Anchieta, ao ouvir a pergunta,  tentou levantar a tampa do baú, buscando informações sobre a origem daquele sujeito. Não conseguiu. Estava emperrada.
Os colonos voltaram a cochichar. Sentiam medo. Aquele baú não devia ter sido tocado, nem mesmo o corpo. Era o que pensavam. Os índios que os acompanhavam mantiveram-se impassíveis, como se não houvesse nenhuma tensão.
- Temos que seguir nosso caminho. Peguem água e vamos embora - ordenou padre Nóbrega.
- E o baú? - Anchieta indagou.
- V-v-v-vamos levar. Estamos chegando.
Os tupinambás carregaram o baú.

Corpos MísticosWhere stories live. Discover now