Eu, libertando o eu

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(acima, o alinhamento de Vênus, Júpiter e a Lua)

***

Eu já me casei.

Casei-me com uma moça a quem chamarei de Lua. Nos conhecemos quando ainda éramos adolescentes, nos esbarrávamos nas esquinas da cidade onde eu morava e apenas nos cumprimentávamos com um sorriso. Por dez anos, foi assim.

Mudei alguns aspectos de meu comportamento quando descobri a gravidez de Lua.

Tem algo de muito estranho na alegação acima, mas foi o que ocorreu quando namoramos. O que tivemos, foi bem próximo de amor, tudo porque ela era uma pessoa rara, cheia de traumas e transtornos muito maiores que os meus. Me senti protetor com ela e sua barriga que gerava a filha que teríamos.

Júpiter adormecera em meu coração, Joaquim aprendia a viver e amar. Até minha mãe, dona L., comentava alegre sobre minha mudança de comportamento.

Senti-me preocupado quando Lua disse que tinha medo de pôr um filho no mundo. "O mundo é violento demais e vamos sofrer", foram suas palavras um dia antes de ir para o pronto socorro com um sangramento. Lá, ela alegou que tivera uma queda no trabalho e aos cinco meses de gestação ocorreu que, Aline, nossa filha teve a vida interrompida.

Tornei-me ainda mais vigilante e protetor com ela, mas o NÓS durou menos de um ano. Aos vinte e sete casei-me e ainda aos vinte e sete, faltando dois dias para meu aniversário, tornei-me viúvo. Júpiter me odiava por ter amado. Eu quis morrer também. Eu chorei. Sufoquei meu EU menor. Prometi a esse EU, que nunca mais o deixaria sofrer. Uma promessa que não se faz. Nem se cumpre.

Testemunhas a viram atirar-se em frente a um caminhão e seu corpo foi completamente moído ao ser arrastado pelo rodado duplo. São necessários, pelo menos cem metros para a parada completa de um veículo com carga pesada, numa velocidade de mais de oitenta quilômetros por hora. Foi exatamente esse trecho que ficou manchado por seu sangue.

Naquele mesmo dia, muito cedo, acordei ao seu lado e sorri. Confidenciei aos meus pensamentos sobre a surpresa que lhe faria, quando comprei aquela pequena chácara onde ela poderia mexer na terra e descarregar suas energias. Queria ajudá-la, queria que ela se curasse e que fosse feliz. Lua era um universo e eu outro. Eu a via por fora, assim como pessoas me vêm. Não parecia, pra mim, tão difícil de retirar aquela mulher do seu inferno. Assim como as pessoas tentam me ajudar sem sucesso. Sei que falhei com ela.

O que me construiu, não foram somente as coisas ruins. Tive uma família que educou-me de forma rígida, porém o amor e o respeito existiam. Eu que era a peça destoante daquele conjunto. Tenho apenas um irmão a quem chamarei de Joares, o cara mais normal que conheço. Também o que mais tentou me tirar do "quarto escuro" onde me escondi desde muito novo.

- Joaquim, eu me preocupo contigo. Tem dias que te olho e vejo um daqueles personagens de filmes de serial killers.

- Credo. - Me obriguei a sorrir. Eu não mataria uma pessoa. - É que... você sabe... eu sou assim... mas não sou mau. Prefiro ficar sozinho e não gosto de me relacionar muito.

- A morte da Lua foi uma coisa traumática, mas ela que quis ir. Tu é novo, não fica se culpando, a mulher que era toda esquisita.

- Eu sou esquisito.

- Mas é meu irmão esquisitão que a gente ama. E não fique com raiva que te bato.

Joares era bem mais alto e forte e se quisesse me socar, seria muito eficaz, já que eu nunca tinha brigado fisicamente. Vencia pelos argumentos ou quando dava o troco inesperadamente. Eu era vingativo, além de rancoroso.

ProfundoWhere stories live. Discover now