Suicídio

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Relembro esta noite com muita amargura.

O pincel desliza sobre o meu rosto, seguro por uma mão tremula. A base e o corretor sobrepõe-se as olheiras que aumentam a cada noite mal dormida.

As cores quentes preenchem os meus olhos, o iluminador em excesso dá vida ao meu rosto pálido, triste.

O espelho diante dos meus olhos deixa-me desconfortável, os meus pensamentos, as minhas memórias aumentam. Atropelam-se uns aos outros.

A tua voz na minha mente. E tantas outras vozes que me apontam todos os erros que cometi.

Eu não posso simplesmente continuar a pintar o meu rosto com cores alegres, quando por dentro não há cor alguma.

Levanto-me.

Solto o cabelo.

Ajeito o vestido, uma ultima vez.

Mas não tenho coragem para olhar para o espelho de novo.

Olho para o telemóvel, a Ana está lá fora à minha espera. Entro no carro, desligo o rádio, já nem a musica sou capaz de ouvir. A viagem até a festa é curta, e silenciosa.

Quando chego as minhas amigas estão demasiado felizes, uma felicidade tão grande que quase me consegue contagiar.

A maioria vem cumprimentar-me, vejo me perdida entre beijos, abraços, e até mesmo alguns elogios.

Mas tudo o que eu realmente queria era estar sozinha.

Toda a gente se ri, em conversas paralelas a minha volta, num tom de voz muito alto, na tentativa de se sobrepor a musica. 

E eu rio também, como se estivesse a prestar atenção as conversas deles, mas os meus pensamentos estão bem distantes.

Eu não consigo tira-lo da cabeça. O meu corpo ainda sente o seu toque repugnante, era como se ainda conseguisse sentir a dor, como se os gritos deles entoassem pelas parardes, o terror envolve-me de novo.

Porque deixei que isto acontecesse? Porque permiti que ele chegasses tão perto para partir o resto que sobrava de mim?

O álcool começa a fazer efeito.

Pensei que me deixaria mais alegre, mas a minha dor só aumenta, a minha vontade de chorar só aumenta.

É como se pudesse sentir uma faca espetar-me o coração.

E a cada passo que dou, sinto-a a espetar, cada vez mais fundo.

És tu quem segura a faca, do outro lado. Mas não te posso culpar, fui eu quem pediu para que a segurasses.

Não é a mentira que dói, é a maneira como a verdade é negada.

Tranco-me na casa de banho, as lagrimas correm, enquanto as minhas costas escorregam pela parede, até ficar sentada no chão.

Não sei por quanto tempo eu estive ali, imóvel, enquanto as lágrimas corriam e o meu corpo perdia as forças.

Reúno forças para sair da casa de banho, com um sorriso falso no rosto. 

Da janela consigo ver a agua brilhar lá fora, no rio.

Um brilho que me atraí, e que me fez caminhar até ele, de forma inconsciente.

A dor era cada vez mais insuportável, as vozes gritavam cada vez mais alto, sentia-me como se pudesse enlouquecer a qualquer momento.

As luzes das estrada faziam a água brilhar ainda mais, mas não o suficiente para conseguir ver o outro lado da margem, e muito menos o fundo

As vozes gritavam cada vez mais alto.

Eu só queria que elas parassem.

Envolvi os meus braços em torno do meu tronco, e saltei.

A água gelada fazia o meu corpo tremer violentamente, e podia senti-la a entrar rapidamente pela minha boca, pelo meu nariz. O ar era arrancado dos meus pulmões de forma dolorosa, mas o meu corpo já não tinha forças para tentar nadar, mesmo que eu nunca tivesse aprendido a fazê-lo.

E de repente aconteceu.

Mesmo com toda a dor que estava a sentir, com os pulmões sem ar, com um coração destruído, senti a paz envolver-me.

Já nada mais importava.

As vozes paravam de gritar.

O meu corpo começava a desistir de lutar para me trazer à superfície.

Conseguia ouvir uma voz distante gritar o meu nome, por momentos pensei que fosse só uma memória distante.

Mas era o Gabriel.

O ateu que já tinha sido o meu anjo tantas vezes.

Os braços dele envolveram o meu corpo, eu já não tinha forças para reagir.

O ar parecia voltar de forma mais dolorosa, a água saia-me pela boca e pelo nariz, podia até sentir o gosto a sangue.

Todo o meu corpo tremia de forma dolorosa, eu não conseguia sentir as minhas mãos sequer.

O Gabriel continuava a agarrar-me e conseguia ouvi-lo murmurrar que nunca me ia deixar morrer.

Mas não importa quantas vezes ele volte para me salvar. Porque naquela noite eu tinha morrido por dentro, e não importava se o meu corpo ainda respirava.

Eu já estava condenada.





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