três.

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— Falyn, a Sra. Rebeca quer falar contigo — Louise diz assim que entra no dormitório sem nem bater na porta. — Por Deus, já disse para você parar de fumar no dormitório, Maxine — ela cruza os braços assumindo uma pose autoritária quando vê a garota de cabelos castanhos curtos sentada na sua cama de forma despojada.

— E daí? — ela murmurou em resposta.

Louise endureceu a sua postura e arranjou os óculos com formato de aviador que estavam perfeitamente colocados no seu rosto quadrado para em seguida passar a mão na sua roupa azul, ciano bem engomada no seu corpo magro, como se quisesse o deixar ainda mais organizado que já estava. Em seguida os seus braços viajaram para o seu peito e então a mesma cruzou os braços na altura do peito enquanto as suas órbitas castanhas encaravam Maxine com superioridade e prepotência.

— Não fale comigo nesse tom — avisou e quando os seus olhos caíram em mim manifestei-me.

— Que foi que eu fiz? — perguntei com o descontentamento notório na minha voz.

Eu estava encolhida na minha cama com os olhos pesados de sono. A única coisa que queria fazer era dormir porque na noite passada fiquei até tarde a estudar para um possível teste surpresa que infelizmente não aconteceu.

— Não sei — repostou indiferente e então se virou para Maxine, ainda com o olhar duro. — Se não apagar esse maço de cigarro agora terá sérios problemas comigo.

Ela riu, alheia a ameaça.

— E que tipo de problemas seriam esses? — provocou.

— Não me teste.

Quando Maxine iria responder tirei as cobertas de cima de mim, calcei os meus chinelos e sai do dormitório. Porque com certeza aquela discussão não seria nada agradável de se ouvir.

Louise Smith é a psicóloga do orfanato e ninguém gostava dela, inclusive eu. Para além dos seus conselhos serem péssimos ela comportava-se como a dona do orfanato e gostava de dar castigos exagerados a pessoas que não a respeitavam. Ela achava-se a autoridade e quando alguma pessoa não seguia as suas ordens, ela insultava-as verbalmente.

Quando cheguei aqui completamente destruída por ter sido abandonada ela gritou comigo e disse para eu deixar de comportar-me como uma garota mimada caso não, a Sra. Rebeca, administradora do orfanato mandar-me-ia embora e em menos de um dia eu morreria na rua por conta da fome. Depois desse dia eu nunca mais fui para a sala dela. Até hoje aquele lugar me assusta, quer dizer, ela em si assusta-me. Mas nunca fui muito fã de problemas então evitava cruzar no caminho dela, porém Maxine e outras pessoas no orfanato não compartilhavam o mesmo pensamento que o meu e a desafiavam, mesmo que no fim do dia fossem chorar num canto qualquer, sozinhos.

Enquanto eu andava calmamente pelos corredores do orfanato cumprimentei algumas pessoas que sorriam para mim pelo caminho. Desde crianças de seis anos até adolescentes.

Diminuí os meus passos no momento em que escutei uma voz familiar ecoar no corredor a pedir para eu parar de andar. Virei-me para encarar
Keanu que corria na minha direção e quando chegou ao meu encontro parou um pouco ofegante enquanto apoiava as mãos no joelho, como se tivesse corrido uma maratona. Assim que ele se recuperou sorriu para mim e me abraçou pelos ombros fazendo com que o cheiro familiar de sabão invadisse o meu espaço pessoal.

— Que foi? — questionei, apertando os seus braços e correspondendo ao abraço.

— Nada. Só queria fazer-lhe companhia — ele diz de forma casual. — Você chegou tarde hoje. Onde estava?

Comprimi os lábios um no outro, nervosa e dei de ombros, como se não fosse nada de mais.

— Eu vou à sala da Sra. Rebeca — avisei, numa tentativa óbvia de fugir do assunto. Mas o mesmo ignorou e mudou de assunto.

Ele é paciente o suficiente para esperar o momento em que eu me sinta segura para o contar. Até lá, ele não me pressionaria.

— Que você fez? — o seu tom de voz era debochado e, ao mesmo tempo divertido. — Ficou fora do dormitório depois das nove horas da noite? Ou não ajudou a senhora do refeitório a lavar os pratos?

— Há há há — revirei os olhos para ele, com humor. — Eu nunca deixarei de ajudar Annette e as outras a arrumar a cozinha. Elas são legais — ele balança a cabeça positivamente, concordando. — E Não sei oque fiz. Louise não me deu muitos detalhes.

Ele rolou os olhos quando mencionei o nome da psicóloga.

— Tudo bem, mas quando acabar de conversar com a Sra. Rebeca venha para sala de jogos. Estou com saudades de ganhar você no xadrez.

— Corrigindo, você está com saudades de perder.

— Pensei que fosse modesta.

— Não tenho culpa se sou melhor que você — brinco a arrancar uma risada dele.

Quando já estávamos perto da sala da Sra. Rebeca ele deu-me um beijo na bochecha e disse que estaria a minha espera. Acenei positivamente com a cabeça enquanto o assistia se afastar de mim.

Keanu Miller é o meu melhor amigo. Nos conhecemos no primeiro dia que cheguei no orfanato. Gostei logo dele porque quando aqui cheguei ele foi o único que falou comigo e tentou fazer-me sorrir. Quando eu chorava por causa da saudade que sentia da minha antiga vida ele abraçava-me e ficava comigo até eu ficar calma.

Suspirei de forma profunda quando parei em frente a porta da Sra. Rebeca e bati três vezes. Até que escutei um “entra” abafado.

Abri a porta de forma lenta e a avistei sentada na sua cadeira com a sua roupa branca impecável. A sua sala estava muito bem arrumada e tudo no seu devido lugar deixando explícita a sua obsessão pela limpeza e organização.

Sentei-me na única cadeira vaga que ali tinha e a encarei sem falar nada. A sua presença era terrivelmente assustadora. Ela já estava na casa dos cinquenta, os seus cabelos grisalhos estavam presos num coque perfeito e o olhar que ela estava a direcionar para mim era frio.

— Boa tarde — resolvi quebrar o silêncio porque não aguentava mais ser encarada por ela.

— Só fale quando eu mandar, menina Lake — respondeu, com a expressão séria.

Resisti a vontade de revirar os olhos e concordei com a cabeça. Nós últimos sete anos que passei aqui aprendi que quando se falava com a Sra. Rebeca o mínimo que você tinha de fazer era fazer tudo que ela mandasse e não agir como um rebelde foda-se o mundo porque se tinha uma coisa que ela sabia dar eram castigos. Ela é muito pior que Louise Smith.

Sra. Rebeca é a encarnação do diabo.

Com o olhar ainda preso no meu ela apoiou as suas mãos na sua mesa e ajeitou a sua postura antes de começar a falar.

— Eu gosto de acompanhar o desenvolvimento académico de todos nesse orfanato, quer dizer, para os que ainda se preocupam com a escola e o seu chamou-me a atenção — começou a falar. — E queria a parabenizar por se preocupar com os seus estudos e motiva-la a continuar assim…

Ela parou por um momento, como se estivesse a escolher as palavras certas para continuar.

— Daqui a pouco fará dezoito anos e precisa estudar muito para conseguir uma bolsa estudo e entrar numa boa faculdade . E pelo jeito, está a dar conta.

Tentei não fazer uma expressão confusa com o rumo da conversa, mas tenho certeza de que não consegui. Eu não era muito boa em esconder sentimentos.

— Obrigada — foi a única coisa que disse.

Sra. Rebeca era de longe uma boa pessoa. E as suas atitudes durante os anos que aqui passei deixaram isso evidente.

Ela tem uma sala especial, vazia, onde manda todo órfão com um mau comportamento para passar a noite. E aquele lugar é o inferno. É gelado, escuro e não tem nada ali dentro. Nem uma cama, nem nada. É só você, o arrependimento e raiva juntos.

Ela diz que aquilo é uma forma correta de nos manter na linha para não voltarmos a cometer o mesmo erro, oque eu me atrevo dizer ser uma abordagem sem lógica nenhuma e com um ensinamento distorcido.

Eu já fui para lá uma vez. Quando cheguei no orfanato no dia seguinte tentei fugir e obviamente correu tudo errado. Conheci aquele inferno cedo demais.

— Vejo que depois do que aconteceu manteve-se forte — ela diz, com um sorriso mordaz no rosto. — Isso é bom. Não são todas pessoas que conseguem seguir em frente depois de terem sido abandonadas pelos pais.

Senti os meus ombros ficaram tensos no mesmo instante.

— Se já terminou, eu preciso ir embora — falei num tom sério.

Esse era o assunto que mais odeia tocar.

Ela estreitou os olhos na minha direção.

— Não precisa ficar assim. Não era a minha intenção deixá-la desconfortável — ela fingiu um falso arrependimento. — Só a estava a elogiar.

Tive vontade de rir e mandar ela ir se foder, mas contive-me. Ela ainda poderia mandar-me para aquela sala mais uma vez e eu não queria isso.

— Pode ir embora. Foi um prazer conversar com você  — ela disse e eu mostrei um sorriso fechado enquanto me levantava da cadeira e em seguida saia da sua sala.

Eu ainda estava confusa. Sra. Rebeca não era mulher de sair por aí parabenizando as pessoas, mas decidi deixar de lado. Isso não me importava agora.

Fui até a sala de jogos para poder encontrar-me com Keanu, mas parei abruptamente na entrada quando o vi rodeado de todos os seus amigos enquanto conversavam animadamente. Provavelmente sobre futebol porque ele era louco por isso.

Ele jogava futebol na escola. Quando ainda se interessava por ela sendo que depois de algum tempo ele simplesmente desistiu tal como a maioria das pessoas no orfanato. Era como se não fosse importante para eles.

Sra. Rebeca tão pouco se importava com o que eles faziam ou deixavam de fazer. A escolha era deles.

No início, tentei conversar com ele e até fiz uma lista dos prós e contras, mas em momento algum ele cedeu e então desisti de tentar.

— Ei, Fal. Vem cá — Keanu gritou, me tirando do transe e atraindo os olhares curiosos das pessoas a sua volta para mim.

Sorri sem graça enquanto me aproximava. Eles desviaram o olhar de mim e continuaram com a sua conversa. Naquela altura Keanu já havia se esquecido do nosso jogo e a única coisa que permanecia na sua cabeça devia ser futebol, futebol e mais futebol.

O único sítio onde tinha um lugar disponível era ao lado de Thomas Larson, um rapaz com a pele negra, tal como a minha e de um sorriso gentil que partilhava o dormitório com Keanu. Ele é um dos poucos rapazes que eu gosto nesse lugar, para além do meu melhor amigo.

— Como você está? — foi a primeira coisa que ele perguntou quando sentei-me ao seu lado.

— Bem e você?

— Também.

E ficamos alguns segundos em silêncio até que não conseguimos mais ficar calados e demos uma risada baixa, para não atrair a atenção para nós.

— Nós teríamos assunto para falar se você não ficasse trancada no dormitório o tempo todo — replicou.

— E quem disse que eu só fico no dormitório? — perguntei, com uma sobrancelha arqueada. — Eu tenho uma vida dupla — adicionei num tom divertido. — Mas não posso o dar mais detalhes porque se não sua vida correrá perigo.

Ele riu, a achar graça o meu comentário.

— Quer jogar xadrez comigo? — mudei de assunto. — Já que o Keanu se esqueceu de que eu existo.

Ele virou o seu rosto para encarar Keanu que estava animado demais, enquanto discutia com o Josh, outro colega seu de dormitório sobre quem era o melhor jogador do mundo.

— Se ele respira, é por causa do futebol — Thomas brinca e eu concordo. — E então, está pronta para perder.

— Eu nunca perco um jogo.

Era o que eu pensava. Até ele me ganhar três vezes seguidas, mas em momento algum pensei em desistir. Nós iríamos jogar até eu ganhar.






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