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 O espelho 

Limpar os objetos antigos daquela sala estava levando mais tempo do que o imaginado mas isso não parecia afetar Iani, o trabalho que ela fazia era quase impecável tanto que até mesmo Lidi decidiu colocar um pouca a preguiça de lado se empenhando na faxina.

—Você é muito boa nisso.

—Acha é?

—Eu tenho certeza!

Sorrindo Iani sacudiu o pó de uma escova de cabelos, o objeto prateado havia perdido seu brilho assim como boa parte dos desenhos em seu cabo mas era quase impossível não imaginar uma mulher de olhos azuis (ou dourados) pentear longas mechas castanhas em algum dos vários quartos daquele castelo.

—Me diga Lidi — Iani guardou o objeto em uma pequena caixa marrom — Faz muito tempo que eles...

—Se foram? — a loba completou com tristeza — Sim, Aiko era apenas um bebê na época.

—Mas ele ainda é tão pequeno...

—Ah, tinha me esquecido desse detalhe, parece que o tempo passa de forma diferente no seu mundo — Lidi cobriu um porta casacos antes de continuar — Quantos anos acha que eu tenho?

—Hm, vinte e dois talvez?

A loba gargalhou arrancando um olhar assustado da pobre humana.

—Eu não entendi qual é a graça...

—Acontece que com essa idade eu seria mais nova do que aquela bola de pelos — seu corpo se moveu pelo comodo puxando o lençol sujo de cima de um divã de couro gasto — Eu tenho Seiscentos e dez anos.

Por reflexo Iani deixou o espanador cair das mãos fazendo seu barulho ecoar alto.

—Seiscentos e dez! 

—Unrrum.

—Nossa...

—Ah vamos la!Eu não sou tão velha assim, o pulguento do Esteve tem oitocentos!

—E quantos anos Aiko têm?!

—Noventa e um.

Atordoada Iani teve que se escorar na parede mais próxima sentindo a friagem das pedras chegar até sua pele. Aquela era mais uma informação para se digerir com calma.

—Isso é surreal...

—Como se ser metade lobo e metade humano também não fosse, estou certa? — a loba sorriu acalmando um pouco os ânimos — Acho que agora entende melhor o porque de eu ter dito que os antigos senhores daqui se foram a um bom tempo.

—Sim... 

—De qualquer forma foi bem difícil para todos — com o olhar baixo Lidi recolheu o tecido sujo passando suavemente o dedo indicador pelo encosto do divã — Eles eram ótimos lideres e boas pessoas, ainda me lembro de vê-los sorrindo pelos corredores do palácio quando eu fazia parte da turminha de estudos.

—Seria muita intromissão minha se eu perguntasse o que aconteceu com eles? — Iani parecia ter se recuperado do choque.

—É uma longa história que tenho certeza que vai conhecer um dia mas, basta saber que uma guerra trás consequências... — os longos dedos foram até o rosto enxugando uma lágrima perdida — Enfim!Estamos quase acabando — ela voltou a sorrir — Eu dou conta desse pedaço, ai só vai faltar a parte mais aos fundos, acha que da conta?

Ainda observando a mais nova amiga Iani se colocou de pé disposta a se redimir por possíveis lembranças ruins que a havia feito relembrar.

—Se esqueceu de que está falando com a rainha da limpeza? 

Ambas riram trazendo de volta o clima ameno e descontraído.

—Quando eu acabar aqui vou lá te ajudar.

—Não precisa, você deve estar bem cansada e convenhamos que eu vivia faxinando as coisas no meu mundo então... eu dou conta.

—Se você diz.

Lançando um breve sorriso Iani passou pelos vários objetos se afastando de Lidi até a parte mais funda da sala. Ela ainda pensava nos antigos senhores e donos daquele reino,  imaginava o quão difícil tinha sido a perda deles para o povo dali, principalmente para Aiko que mal chegou a conhecer os próprios pais além de Aaron que provavelmente assumiu uma grande responsabilidade ainda muito jovem. Com a cabeça nas nuvens Iani parou no meio do espaço vazio e mal iluminado procurando mais dos objetos ocultos para limpar, no entanto, não havia nada ali.

—Ué.

Será que Lidi se enganou?

Seus olhos varreram o espaço tentando se acostumar com a escuridão mas mesmo assim não encontrou nada. Prestes a ir embora a jovem decidiu avançar mais um pouco até ser engolfada pelo vazio quando algo finalmente tomou forma. O objeto era grande, talvez o maior de todos, estava tão afastado e escondido que Iani não saberia dizer como o encontrou, era como se alguma coisa a tivesse induzido ir até ele. Como se o próprio desse permissão para ser encontrado. Observando o longo pano cinzento que o cobria ela esticou a mão sentindo os pelos do corpo se eriçarem. Ao longe os sons de Lidi trabalhando começaram a se tornar cada vez mais distantes conforme o tecido escorregava revelando um belíssimo espelho oval com bordas de ouro. Iani não era capaz de ver ou ouvir mais nada, estava encantada com o objeto, mesmo no escuro seu brilho emanava como se tivesse uma luz própria. 

—Nossa...

Curiosa e fascinada seu corpo moveu em direção ao espelho onde o reflexo de uma jovem com roupas sujas, de coque bagunçado e com um espanador na mão tomou forma. Iani contemplava o próprio reflexo como se nunca o tivesse visto antes, se sentia estranhamente atraída por ele, era como se a garota do outro lado a chamasse com o olhar. Um intenso olhar azul. Quando se aproximou o suficiente para tocar no vidro Iani sentiu uma intensa alegria tomar conta de si. Nada que lembrasse ter sentido em toda a sua vida. Estava feliz. Seu reflexo estava feliz. Nesse instante a garota foi capaz de vislumbrar um par de olhos dourados aumentando ainda mais aquela sensação. 

O reflexo das duas jovens sorriam, uma com roupas simples enquanto a outra vestia tecidos finos.

—Cuidado...

A voz do espelho ecoou por todos os lados. Mas Iani não ouviu.

—Cuidado com ele...

De repente toda a alegria se transformou em uma dor aguda e imensurável fazendo com que seu corpo dobrasse dolorosamente em direção ao chão. Os olho dourados haviam sumido, o que restava agora era um tênue brilho vermelho que parecia encara-la por de trás do reflexo da garota caída no chão. 

—Cuidado com Osires!

Como se algo perfurasse seu peito Iani gritou de dor conforme os sentidos iam a abandonando aos poucos. 

Eu não quero morrer...

O silencio a embalava junto da escuridão.

Eu não quero...

Olhando uma ultima vez para o grade objeto a sua frente Iani viu, em um ultimo deslumbre de consciência, a imagem de uma jovem mulher estirada ao chão empalada por uma espada tão negra quanto a noite. Ao seu lado, uma figura envolta pelas trevas a observava, os olhos vermelhos brilhando na escuridão, a mesma que consumiu Iani segundos antes do mundo se apagar ao seu redor.

Lobos na floresta | Livro 1 (Repostando)Where stories live. Discover now