Capítulo cinquenta e nove - Mergulhando no passado - *Nereide e seus pais*

64 4 44
                                    

A garota caminhava de volta para casa, uma mochila surrada nas costas, os pés sujos com a terra vermelha da estrada, o suor escorrendo pelo rosto e o sol, soberano, brilhando em um céu azul e sem nuvens. Ela voltava de mais uma aula entediante e, em sua opinião, totalmente desnecessária. Odiava aquela vida. Não entendia o motivo que levava seus pais a teimar em viver no meio do mato. Como podia ser filha de dois caipiras ridículos e sem nenhuma ambição? Será que não tinha sido trocada na maternidade?

Queria ser uma feliz moradora de cidade grande, ser vista, conhecer pessoas importantes e ricas. Viver no luxo. Mas não, tinha que ter nascido naquele fim de mundo e ser filha de dois idiotas que se contentavam com uma vida miserável e enfadonha.

Seus pais eram agricultores e viviam do que plantavam, eles também, uma vez na semana iam vender verduras e legumes na feira da cidade. Nessas ocasiões usavam um carro de boi, o que na opinião da filha inconformada, era extremamente humilhante. E para piorar, ela ainda tinha que ajudá-los na maldita barraca que tinham na feira.

A ambiciosa filha não se conformava com a vida simples que levava, não suportava ficar escondida do mundo. Achava um desperdício uma garota tão linda como ela, viver isolada.

Enquanto caminhava debaixo do sol ardente com o suor escorrendo por seu corpo e encharcando o uniforme escolar, sentindo nojo por estar pegajosa e com a aparência horrorosa pela longa exposição aquele sol que mais parecia uma fornalha gigante, Gertrudes, que mais tarde se tornaria Nereide, pensava em como faria para sair daquele lugar.

Sabia que iria enlouquecer se tivesse que passar mais tempo vivendo como uma selvagem. Foi então que, no auge de sua raiva por seus progenitores, teve uma ideia macabra. Se um de seus pais morresse, talvez o outro se sentisse tão infeliz que não quisesse mais viver naquele lugar. Seria fácil para ela convencer o cônjuge viúvo e desolado a vender aquelas terras e ir para a cidade.

Ela poderia ter afastado aquela ideia de sua mente, poderia ter se arrependido por permitir que algo tão monstruoso passasse por seus pensamentos. Poderia, mas não o fez.

Durante meses, Gertrudes acariciou o pensamento, amadureceu-o e se convenceu de que era a única maneira de viver como queria. Desejava dia após dia que um dos dois morresse. E quando viu que isso não aconteceria tão cedo, decidiu que daria um jeito de apressar as coisas. Tornaria um dos pais viúvo, mas qual deles ficaria mais triste e frágil se perdesse o companheiro?

Chegou a conclusão, depois de muito pensar, de que sua mãe não suportaria perder o marido, não conseguiria lidar com a solidão e venderia tudo para ir morar na cidade.

Empolgada e já visualizando sua nova vida, ela planejou tudo, nos mínimos detalhes.

Na véspera de realizar o ato hediondo, em um sábado, depois que a noite caiu ela saiu de casa e cavou a sepultura que abrigaria seu progenitor. Sabia dos hábitos religiosos da mãe, então concluiu que no domingo seria a ocasião perfeita.

Assim que o dia amanheceu, a garota começou a colocar em prática seu plano macabro. Fingiu não se sentir bem, ficou na cama gemendo baixinho e tossindo de vez em quando. Ouviu quando a porta do seu quarto abriu e seus pais entraram. A mãe veio até ela, colocou a mão em sua testa.

- Não tem febre - A mulher informou ainda com a mão na testa da filha - Mas, acho melhor eu ficar em casa. Hoje não irei à igreja.

Aquilo não podia acontecer. A garota ficou tensa e tratou de tranquilizar a mulher a sua frente.

- Pode ir mãe - Falou fazendo esforço para a voz sair o mais despreocupada possível - Eu vou ficar bem. É só um resfriado, ontem fui nadar depois que anoiteceu. Daqui a pouco eu levanto e tomo uma colher do seu xarope.

- Pode ir - O pai falou - Eu fico em casa e cuido dela.

A mulher relutou. Então ouviram um barulho de carro aproximado-se. Em alguns minutos alguém chamava lá fora. Era a tia rica de Gertrudes que as vezes, muito raramente, aparecia para levar a irmã aos cultos de domingo. Óbvio que só fazia aquilo para cumprir seu papel de boa cristã e não por ser uma irmã amorosa, já que quase nunca aparecia.

A mãe de Gertrudes saiu do quarto, conversaram um pouco e então o veículo foi embora. A tia nem se preocupou em entrar no quarto para ver a sobrinha. Mas Gertrudes não se importava, um dia seria rica e iria esfregar seu dinheiro na cara daquela mulher arrogante.

Depois que o barulho do carro desapareceu, ela ficou esperando ouvir a voz da mãe, mas só escutou o silêncio. Estava sozinha com o pai. Era sua chance, se não fizesse naquele dia, não faria nunca mais.

A garota sabia que tinha pouco tempo para executar seu plano. Sentia um pouco de medo, não era tão fácil como havia imaginado, mas precisava fazer.

A fim de atrair o pai, Gertrudes gemeu alto, como se sua falsa dor tivesse aumentado. Ouviu passos se aproximando e segurou o cabo da faca que havia deixado embaixo do travesseiro. Sabia que ponto devia atingir no corpo do homem, ele não teria nenhuma chance.

O pai abriu a porta e entrou no quarto.

- Sente dor? - Ele perguntou com voz preocupada, trazia um copo de água em uma das mãos - Eu trouxe remédio para você. Não é o xarope da sua mãe... eu sei que você não o suporta - Ele fez um som de riso.

Gertrudes não olhou no rosto dele. Ela ficou tensa e por um momento pensou em desistir. Porém foi um pensamento rápido, assim que o pai se posicionou ao lado de sua cama ela cravou a faca em seu peito esquerdo. O homem arregalou os olhos, incrédulo e sem reação. A filha puxou a faca e enfiou novamente no corpo do pai. Ela não parou até ter certeza de que ele estava morto. Quando se convenceu de que não havia mais vida no homem caído ao lado de sua cama. Ela iniciou o ato de se livrar do corpo, depois limpou todos os vestígios do crime.

Mais tarde, quando a mãe chegou em casa e perguntou pelo esposo, a filha lhe disse, com toda a tranquilidade do mundo, que ele tinha ido até a cidade. Ninguém nunca soube o que havia acontecido, mas os planos de Gertrudes não deram certo.

Um mês depois do acontecido a mãe descobriu que estava grávida, ficou arrasada, o esposo não voltava e ela agora teria que cuidar de dois filhos sozinha. No final ficou grávida e sozinha, pois Gertrudes fugiu de casa, dois meses depois. Ela tinha dezesseis anos.

Bateu na porta da casa da tia rica, pediu abrigo, disse que a mãe havia lhe expulsado de casa e mostrou alguns hematomas, que ela mesma havia feito em seu corpo, alegando terem sido feitos pela mãe. Porém a outra não se sensibilizou como ela esperava, muito menos lhe deixou ficar. Gertrudes prometeu que destruiria a vida da mulher assim que fosse rica e poderosa.

A garota não voltou para casa, pelo menos não para morar. Ela conseguiu documentos falsos, foi fácil, ela era bonita e estava disposta a qualquer coisa para conseguir alcançar seu objetivo. Gertrudes passou a usar sua beleza para atrair homens ricos.

Quando alguém se propõe a seguir o caminho do mal, é comum que muitas portas se abram, pelo menos foi assim para Gertrudes. Antes de atingir a maioridade real, ela já transitava no seio da alta sociedade. Era uma garota cobiçada pelos figurões e sabia usar isso em seu favor.

Vez por outra a filha visitava a mãe, porém não eram visitas feitas por causa da saudade ou de outro sentimento de apreço. Não. Ela ia para humilhar a mãe, para mostrar suas conquistas e provar que era uma pessoa melhor, superior. Era assim que ela se via e era assim que todos deviam vê-la, inclusive a inútil de sua mãe.

O que eu não te contei ( Em Processo de Revisão )Where stories live. Discover now