Entrada XLVI

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Caderno. Caderno...

Cara, sabe quando você tem um clique? Aliás, melhor: sabe quando você tem uma suspeita, mas a suspeita é tão nefasta que você tem medo de ir atrás saber se a suspeita é só uma suspeita ou se é fato? Pois é. Eu não vou dar um escândalo aqui, logo no primeiro parágrafo, mas confesso que a vontade é grande, como sempre. O que eu posso te dizer é que o que eu vou te contar aqui hoje muda completamente o rumo desta história e, olha, eu não sei o que vai ser daqui em diante, e vou precisar muito da sua ajuda pra me manter sob controle, porque eu estou do avesso; não consigo pensar em nada com clareza e não sei calcular os próximos passos; e você, meu amigo, está prestes a ser testemunha de algo terrível.

A Clarissa está hospedada aqui em casa, como eu já disse na última (?) vez em que passei aqui. A gente conversou mais sobre o tal canil e, olha, o negócio é ainda pior do que parece. Existem, pelo menos, aqui em Taigo, quatro pessoas comandando o esquema todo: uma pessoa é responsável por encontrar as moças; outra é responsável por administrar os membros do clube (quem entra e quem sai); outra é a Madame Cécile, que é a cafetina; e tem o chefe do esquema, que é o tal de “galo”. Pois é. Eu estou com essa história na cabeça em tempo integral desde que a Clarissa me contou, e desde então eu estou tentando encontrar alguma forma de puxar um fio da meada, de me infiltrar nesse esquema, de conseguir informações, de dar um jeito de acabar com esse circo de horrores. E fiquei pensando, pensando, pensando...

Prostituição, sequestro, quadrilha, menores de idade, clube de cavalheiros, Clarissa, Raquel, JP, Madame Cécile, canil, galo, galo, galo... Caderno, isso só pode ter sido Deus; uma epifania; um lampejo que atingiu meu cérebro feito uma bala de metralhadora por algum tipo de intervenção divina.

O nome do Lúcio... O nome completo do Lúcio é Lúcio Gallo Mendonça.

Cara, quando eu pensei nisso, uma onda de mal estar atravessou meu corpo inteiro e revirou meu estômago. Fazia sentido! Ele estava lá naquele dia; eu o vi! Ele fazia parte daquele lugar de alguma forma!... Mas só a ideia de que ele poderia ser o chefe dessa quadrilha me dava calafrios. Me senti terrível. Fiquei com isso na cabeça o tempo inteiro ontem e hoje, mas não tive coragem de perguntar nada à Clarissa, porque meu medo de descobrir alguma coisa era maior do que minha vontade de fazer justiça. Pensa, caderno, pensa comigo. Você consegue imaginar o quanto esse cara é mau, diabólico, abominável? Eu já cansei de falar aqui sobre todas as coisas que você sabe que ele faz. Imagina que agora ele poderia ser o chefe de uma quadrilha que sequestra e prostitui mulheres, incluindo menores de idade! Pensar nisso fez todo aquele ódio adormecido voltar à tona e, junto com ele, uma brasa parecia arder no meu peito ao pensar que isso, que essa suspeita não fosse mera coincidência; se ela se confirmasse, eu estaria lidando com um criminoso de calibre muito mais alto do que eu poderia imaginar.

Depois que Clarissa saiu do banho, agora à noite, chamei-a para vir ao meu quarto. Passei inúmeras horas pensando nessa história e em todas as consequências que ela geraria se fosse verdadeira; alguma coisa tinha que ser feita. “Você reconheceria o ‘galo’ se visse uma foto dele?”, perguntei, receoso de que a resposta fosse afirmativa. “Vi ele só umas três vezes, mas acho que sim”, ela respondeu. Procurei, então, nos meus arquivos do computador uma foto do casamento da minha mãe em que ele aparecesse de frente e de corpo inteiro. “É ele?”, perguntei abrindo uma foto em que ele estava de terno e gravata ao lado da minha mãe. Meu coração batia tão forte que eu temia que ele fosse parar, e meu temor se intensificou duplamente quando Clarissa respondeu: “É ele”.

Não dá pra explicar o que se passou dentro da minha cabeça quando recebi essa confirmação. Meus neurônios pareciam estar em guerra. Eu pensava em tudo que havia se passado desde que eu saí de casa, em tudo que mudou na minha vida desde que comecei a me prostituir, em tudo que havia mudado na vida de todas aquelas meninas desde que elas foram presas naquele lugar, em como a minha mãe não faz a menor ideia de que o marido dela é um bandido, em como eu havia ido parar naquele lugar horroroso também sem saber de nada, em quantas pessoas estariam de fato envolvidas nessa rede criminosa, em como eu faria pra voltar lá e derrubar esse esquema... “Você tem certeza?”, perguntei a Clarissa. “Tenho, absoluta. Mas quem é ele? Você conhece?”. “Conheço... Ele é meu padrasto”. Clarissa arregalou os olhos e tampou a boca. “Meu Deus!”, exclamou. O espanto dela não era maior do que o meu. “E o que você vai fazer?”. Eu ainda não sei direito o que vou fazer, caderno. Me ajuda a pensar. Eu estou pensando em tanta coisa ao mesmo tempo que não sei em que pensar primeiro; eu só sei que preciso tomar alguma atitude em relação a isso. Mas, cara, eu ainda tô em choque. O desgraçado é mais desgraçado do que eu imaginei. Mais desgraçado do que qualquer um poderia ter imaginado. Caralho...

Eu acho que vou procurar o Paulo. Ele é advogado, entende dessas coisas; deve saber melhor do que eu como agir diante a esses fatos todos. Eu só sei que preciso de provas e testemunhas, e que preciso denunciar o desgraçado de forma que os colegas de trabalho dele não fiquem sabendo, mas não sei fazer nada disso. A única coisa que eu tenho agora é a Clarissa, que volta pra cidade dela semana que vem e já se dispôs a me ajudar no que for preciso. É melhor ela ir embora mesmo, o quanto antes; aqui ela corre perigo. Decerto ela volta pra testemunhar, quando o desgraçado e a quadrilha toda já estiverem em cana. Ela é minha única carta na manga; não posso arriscar perdê-la pra essa máfia... Tentei entrar em contato com o James, pra pedir pra ele me levar ao tal canil, mas a última vez que nos falamos foi quando ele me ligou pra contar da morte do JP. Depois disso eu já limpei meu registro de chamadas mais de uma vez; o número não consta no meu celular, e, se tento ligar pro número do JP, a ligação não é concluída; certamente jogaram o chip fora depois que ele faleceu. E, ainda que eu conseguisse localizá-lo, pra entrar no canil é preciso ser convidado. Lembro de o JP me dizer que eu tinha autorização pra entrar lá apenas e tão somente acompanhado por ele. Agora que ele morreu, é impossível eu entrar... A menos que eu tentasse comer a tal da Madame Cécile e ela me pusesse na lista de frequentadores em troca. Mas pra isso eu teria que saber chegar lá... Merda! Tá muito complicado, caderno. Me ajuda a pensar.

Bom, agora eu não consigo raciocinar direito; vim aqui só pra te manter atualizado e ciente dessa novidade. Minha outra certeza é que agora, definitivamente, eu vou aceitar o convite da minha mãe e passar o ano novo na casa deles. Quero ver aquele desgraçado, cara a cara. E preciso dar um jeito de conseguir acesso à casa deles de novo, regularmente, porque, lá, certamente, em algum lugar, em algum canto, existe uma prova, por mais ínfima que seja, que possa indicar alguma coisa. Eu preciso parar esse desgraçado, caderno! Eu preciso! Por mim e por todas as pessoas que ele já desgraçou.

Enfim. Vou ver se durmo um pouco e volto depois com alguma ideia mais funcional, quando estiver com a cabeça fria. No momento eu não consigo chegar a conclusão nenhuma. Me ajuda, caderno. E reza por mim, que, a partir daqui, minha vida também pode estar em jogo... Se cuida. Até a próxima. 

Vincent (romance gay)Where stories live. Discover now