II. O viajante

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Próprio de espírito sorumbático é andar sempre calado: tagarelar é o encanto e a alma da vida.
La Chaussée

Comigo, respondeu Sancho, meu primeiro movimento é logo tal comichão de falar que não posso deixar de desembuchar o que me vem à boca.
 Cervantes, Dom Quixote



O dia 15 de julho de 1860 era dia claro, sereno e fresco, como costumam ser os chamados de inverno no interior do Brasil. Ia o Sol alto em seu percurso, iluminando com seus raios, não muito ardentes para regiões intertropicais, a estrada, cujo aspecto há pouco tentamos descrever e que da Vila de Sant'Ana do Paranaíba vai ter aos campos de Camapuã.

A essa hora, um viajante, montado numa boa besta tordilho-queimada, gorda e marchadeira, seguia aquela estrada. A sua fisionomia e maneiras de trajar denunciavam de pronto que não era homem de lida fadigosa e comum ou algum fazendeiro daquelas cercanias que voltasse para casa. Trazia na cabeça um chapéu do Chile de abas amplas e cingido de larga fita preta, sobre os ombros um poncho-pala de variegadas cores e calçava botas de couro da Rússia bem-feitas e em bom estado de conservação.

Tinha quando muito vinte e cinco anos, presença agradável, olhos negros e bem rasgados, barba e cabelos cortados quase à escovinha e ar tão inteligente quanto decidido.

Na mão empunhava uma comprida vara que havia pouco cortara, e com que ia distraidamente fustigando o ar ou batendo nos ramos de árvores que se dobravam ao alcance do braço.

Vinha só e, no momento em que damos começo a esta singela história, achava-se no bonito trecho de caminho que medeia entre a casa de Albino Lata e a do Leal, a sete boas léguas da sezonática e decadente Vila de Sant'Ana do Paranaíba.

Nesta porção de estrada, ensombrada pelas árvores de vistoso cerrado, o leito, ainda que já bastante arenoso, é firme e parece mais aleia de bem tratado jardim, do que caminho de tropas e carreadores.

Ainda aumenta os encantos daquele lance a inúmera quantidade de rolas caboclas a brincar na areia e de pombas de cascavel, cujo bater das asas produz um arruído tão característico e singular.

O nosso viajante, se caminhava distraído e meio pensativo, não parecia, contudo, de gênio sombrio ou pouco divertido.

Muito ao contrário, sacudia às vezes o torpor em que vinha e entrava a cantarolar, ou assobiar, esporeando a valente cavalgadura, que na marcha que tomava ia abanando alternadamente as orelhas com o movimento cadencial da cabeça.

Numa dessas reações contra alguma preocupação, disse em voz alta, puxando por um relógio de prata, seguro em corrente do mesmo metal:

– Às duas horas, pretendo sestear no paiol do Leal. Falta pouco para o meio-dia, e tenho tempo diante de mim a botar fora.

Moderou, pois, a andadura que levava o animal e mais ativamente recomeçou a zurzir os galhos das árvores, bocejando de tédio.

Também pouco tempo caminhou só, por isto que em breve ao seu lado emparelhou outro viajante, escanchado num cavalinho feio e zambro, mas muito forte, o qual, coberto como estava de suor, mostrava ter vindo quase a galope.

Homem já de alguma idade, recém-chegado era gordo, de compleição sanguínea, rosto expressivo e franco. Trajava à mineira e parecia, como realmente era, morador daquela localidade.

– Olá, patrício – exclamou ele conchegando a cavalgadura à da pessoa a quem interpelava – então se vai botando para Camapuã?

Olhou o nosso cavaleiro com desconfiança e sobranceria para quem o interrogava tão sem-cerimônia e meio enviesado respondeu:

Inocência (1872)Onde histórias criam vida. Descubra agora