VII. O naturalista

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A minha filosofia toda resume-se em opor a paciência às mil e uma contrariedades de que a vida está inçada.
 
Hoffmann, O reflexo perdido



Serena e quase luminosa corria a noite. No puro campo do céu cintilava, com iriante brilho, um sem-número de estrelas, projetando na larga fita da estrada do sertão, misteriosa e dúbia claridade.

Pelo caminhar dos astros havia de ser quase meia-noite; e, entretanto, a essa hora morta, em que só vagueiam à busca de pasto os animais bravios do deserto, vinham a passo lento, pelo caminho real, dois homens, um a pó, outro montado numa besta magra e já meio estafada.

Mostrava o pedestre ser, como de feito era, um simples camarada, e vinha com grossa e comprida vara na mão tangendo diante de si lerdo e orelhudo burro, sobre cujo lombo se erguia elevada carga de canastras e malinhas, cobertas por um grande ligal.

Quem estava montado e cavalgava todo encurvado sobre o selim, com as pernas muito estiradas e abertas, parecia entregue a profunda cogitação. Devia ser homem bastante alto e esguio e, como o observamos, apesar da hora adiantada da noite, com olhos de romancista, diremos desde já que tinha rosto redondo, juvenil, olhos gázeos, esbugalhados, nariz pequeno e arrebitado, barbas compridas, escorrido bigode e cabelos muito louros. O seu traje era o comum em viagem: grandes botas, paletó de alpaca em extremo folgado, e chapéu-do-chile desabado. Trazia, entretanto, a tiracolo, umas quatro ou cinco caixinhas de lunetas ou quaisquer outros instrumentos especiais, e na mão segurava um pau fino e roliço, preso a uma sacola de fina gaze cor-de-rosa.

Homem de meia-idade, de fisionomia vulgar e balorda, era o camarada, e, pelos modos e impaciência com que fustigava o animal de carga, indicava não estar afeito ao gênero de vida que exercia.

Em silêncio e na ordem indicada, caminhava a tropinha: o burro carregado na frente, logo atrás o inábil recoveiro; em seguida fechando a marcha, o viajante encarrapitado na magra cavalgadura.

Houve momento em que, depois de algumas pauladas de incitamento, pareceu querer o cargueiro protestar contra o tratamento que tão fora de hora recebia e, fincando os pés na areia, resolutamente parou.

Provocou a relutância, porém, uma chuva de verdadeiras cacetadas que ecoaram longe e se confundiam com os brados e pragas do camarada.

– Burro do diabo! – berrava ele. – Mil raios te partam, bicho danado! Arrebenta de uma vez!... Vá para os infernos! Entrega a carcaça aos urubus!

Durante uns bons minutos, o cavaleiro, que fizera parar o seu animal, esperou pacientemente qualquer resultado: ou que a renitente azêmola se desse afinal por convencida e avançasse, ou então estourasse.

– Juque – disse ele de repente com acento fortemente gutural e que denunciava a origem teutônica –, se porretada chove assim no seu lombo, você gosta?

O homem a quem haviam dado o nome de Juca, voltou-se com arrebatamento:

– Ora, Mochu, isto é um perverso sem-vergonha, que deve morrer debaixo do pau. Esta vida não me serve!...

– Mas, Juque – replicou o alemão com inalterável calma –, quem sabe se a cangalha não está ferindo a pobre criatura?

– Qual! – bradou o camarada – Isto é manha só. Conheço este safado, este infame, este...

E, levantando o varapau, descarregou tal paulada no traseiro do animal que lhe fez soltar surdo gemido de dor.

– Juque – observou o patrão em tom pausado –, quem sabe se na frente há pau caído ou pedra, que não deixe ele ir para diante?

– Pedra, Mochu, e pau na cabeça até rachá-la, é que precisa este ladrão...

– Vê, Juque – insistiu o alemão.

– Ora, Mochu...

– Vê, sempre...

Saiu resmungando o camarada de detrás do borrego e deu a volta.

Na frente avistou logo o ramo quebrado que Pereira deixara cair no meio da estrada para desviar os acompanhadores de Cirino.

– Uê! Uê! – exclamou com muita surpresa – Aqui esteve alguém e pôs este sinal para que não se passasse...

– Eu não disse a vóce – replicou o cavaleiro com voz até certo ponto triunfante. – Asno tem razão: para diante há alguma coisa.

– Mas na vila, contestou José, nos disseram que o caminho vai sempre direitinho, sem atrapalhação nenhuma...

– Na vila disseram isso – confirmou o outro.

– E, então?

– E, então? – repetiu o alemão.

Houve uns segundos de silêncio.

Depois o cavaleiro acrescentou com a mesma imperturbável serenidade, e como que achando explicação muitíssimo natural:

– Na vila muita gente não sabe caminho. É.

– Mil milhões de diabos – interrompeu o camarada todo frenético –, levem o gosto desandar por esses matos do inferno a horas tão perdidas! Eu bem disse a Mochu, ninguém viaja assim. Isto é uma calamidade...

– Juque – atalhou por seu turno o patrão –, o que é que adianta estar a berrar como um danado?... Olhe, antes, se por aí você não vê algum caminho do lado.

Obedeceu o outro e sem dificuldade achou a entrada da picada que levava a morada de Pereira.

– Está aqui, Mochu, está aqui! – anunciou ele com alegria – É um trilho que corta a estrada e vai dar nalguma casa pertinho.

Mudando repentinamente de tom, observou com voz tristonha:

– Contanto que até lá não haja alguma légua de beiço...

– Ah! Eu não lhe disse – respondeu o alemão. – Agora toque barro devagarinho; ele anda que nem vento.

Pareceu o animal compreender, o alcance moral da vitória que acabara de colher e prestes enveredou pela trilha com alento novo e até desusada celeridade.

A razão é que também daí a pouco sorvia ele, teimoso e marralheiro bicho, como soem ser os da sua espécie, a bela água do ribeirão, em que se haviam refrescado as cavalgaduras de Cirino e de Pereira.

Inocência (1872)Where stories live. Discover now