XXIII. A última entrevista

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Está a máscara da noite sobre meu rosto: a não ser ela, verias as minhas faces tintas do rubor virginal.
Shakespeare, Romeu e Julieta, Ato II

 Mais cresce a luz, mais aumentam as trevas das nossas desgraças.
Idem, Ato IV



Grave modificação trouxe a retirada de Meyer no sistema de viver daquela morada, onde se agitava um dos problemas mais comezinhos da natureza moral, mas que ali apresentava cores algum tanto carregadas, senão já sombrias.

Fora Pereira dormir no interior da casa, passando ali a maior parte do tempo. Assim os encontros dos dois apaixonados tornaram-se de todo impossíveis, e, não tendo mais a atenção do mineiro o alvo que sempre colimara durante a estada do alemão, começava como era de prever, a voltar-se para Cirino, a quem confessou ter tratado Meyer com injusta prevenção.

– Hoje – dizia o mineiro –, dói-me a consciência do modo por que desconfiei daquele homem... Quem sabe se tudo que eu parafusei não foi abusão cá da cachola? Sr. Cirino, quando a gente entra a dar volta ao miolo... é que vê que todos têm queda para malucos... Sim, senhor!... Hoje estou convencido que o tal alamão era bom e sincero... Olhou para a menina... achou-a bonitinha... e disse aquele despotismo de asneiras sem ver a mal... Em pessoa que não guarda o que pensa, é que os outros se podem fiar... Às vezes o perigo vem donde nunca se esperou... Enfim não me arrependo muito de ter feito o que fiz... Receei e tomei tento...

Amiudando-se estes e outros dizeres iguais, deram que refletir a Cirino. De uma hora para outra compreendeu que as vistas inquisitoriais poderiam tornar a sua posição insustentável.

Por enquanto tratou de encontrar-se com Inocência. Grandes eram as dificuldades; o meio único, tentar novamente as entrevistas noturnas; pelo que do laranjal não arredava pé, noites e noites inteiras, ficando ali com os olhos presos à janela da querida do coração.

Certa madrugada, viu afinal a sombra de Inocência.

Achou-se, num ápice, o mancebo junto dela e agarrou-lhe com violência nas mãos.

– Enfim – exclamou ele, eu a vejo.

– Meu pai – murmurou a moça com voz tão fraca que mal se ouvia – pode acordar...

– Não importa, replicou Cirino desabrido, descubra-se tudo... não posso mais viver assim...

– Xi! – observou ela – Cuidado! Se ele nos acha aqui, mata-nos logo... Olhe, vá-me esperar junto ao corguinho para lá do laranjal... daqui a nada vou ter com mecê... A porta esta só encostada...

O moço fez sinal que obedecia e sumiu-se incontinenti na escuridão do pomar.

Aquela hora dava a lua de minguante alguma claridade à terra; entretanto, como que se pressentia outra luz a preparar-se no céu para irradiar com súbito esplendor e infundir animação e alegria à natureza adormecida. Nos galhos das laranjeiras, ouvia-se o pipilar de pássaros prestes a despertar, um gorjeio íntimo e aveludado de ave que cochila; e ao longe um sabia mais madrugador desfiava melodias que o silêncio harmoniosamente repercutia. Riscava-se o oriente de dúbias linhas vermelhas, prenúncio mal percebível da manhã; nos espaços pestanejavam as estrelas com brilho bastante amortecido, ao passo que fina e amarelada névoa empalecia o tênue segmento iluminado do argênteo astro.

Não era mais noite; mas ainda não era sequer a aurora.

Tão comovido se sentia Cirino, que teve de sentar-se, enquanto esperava por Inocência.

Inocência (1872)Where stories live. Discover now