XXIX. Resistência de corça

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Acasto – Não pode ela falar?
Osvaldo – Se falar é tão somente fazer ouvir sons por meio da língua e dos lábios e aquela criatura muda; mas se tão maravilhosa faculdade consiste também em tornar compreensíveis os menores pensamentos por acionados e expressivos gestos, pode dizer-se que ela a possui, pois seus olhos cheios de eloquência têm uma linguagem inteligível, embora falha de sons de palavras.
Antiga comédia inglesa citada por
Walter Scott



Deixamos Inocência tão abatida de corpo, quanto resoluta de espírito.

Pressentia os choques que tinha de suportar, e robustecia a alma na meditação contínua e firme de sua infelicidade.

Estava de joelhos diante da imagem de Nossa Senhora, quando a voz de seu pai a fez levantar.

– Nocência! – chamava ele.

Rapidamente passou a pobrezinha a mão pelo rosto para apagar os vestígios de copioso pranto, e com passo e seguro penetrou na sala.

Estavam Pereira e Manecão sentados junto à mesa. O anãozinho Tico aquecia-se aos pálidos raios de um sol meio encoberto e, sentado à soleira da porta, brincava com umas palhinhas.

– Estou aqui, papai – disse Inocência em voz alta e um pouco trêmula.

Encarou-a Manecão com ar entre sombrio e apaixonado.

Julgou dever dizer alguma coisa.

– Até que afinal a dona saiu do ninho... É que hoje o dia está de sol, não é?

A moça nada lhe respondeu; fitou-o com tanta insistência que o fez abaixar os olhos.

– Ela esteve doente – desculpou Pereira.

E voltando-se para a filha:

– Sente-se aqui bem perto de nós... O Manecão quer conversar com você em negócios particulares.

– Bem percebe ela – observou o desazado noivo intentando abrir o motivo para risos.

Inocência replicou em tom incisivo:

– Não percebo.

– Está se... fazendo de... engraçada – balbuciou Manecão. – Pois já... se esqueceu... do que tratei com seu pai?... Parece que comeu muito queijo.

Com a mesma entoação e cortando-lhe a palavra retorquiu ela:

– Não me lembro.

Houve uns minutos de silêncio.

Acumulava-se a cólera no peito de Pereira; seus olhares irados iam rápidos de Manecão à imprudente filha.

– Pois, se você não se lembra, disse ele de repente, eu cá não sou tão esquecido.

– Ora – recomeçou Manecão levantando-se e vindo recostar-se à beira da mesa para ficar mais chegado à moça –, faz-se de enjoada à toa... o nosso casamento...

– Seu casamento? – perguntou Inocência fingindo espanto.

– Sim...

– Mas com quem?

– Ué! – exclamou Manecão – Com quem há de ser... Com mecê?

Pereira fora-se tornando lívido de raiva.

O anão acompanhava toda essa cena com muita atenção. Cintilavam seus olhinhos como diamantes pretos; seu corpo raquítico estremecia de impaciência e susto.

Inocência (1872)Where stories live. Discover now