IX. O medicamento

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Não tendes que labutar com doente muito grave, e eis o serviço que de vós espero...
 
Hoffmann, A porta entaipada

 Quem me poderá dizer por que me parece tão duro o leito?... Por que passei esta noite que se me figurou tão longa, sem gozar um momento de sossego?... Surge a verdade: em meu seio penetraram as agudas setas do amor.
Ovídio, Elegia II



Quando Cirino entrou no quarto de Inocência, já estava ela acordada. Sentara-se o pai à cabeceira da cama, a cujos pés se acocorara Tico, o anão, sobre uma grande pele de onça.

– Então – perguntou o médico tomando o pulso à mimosa doente –, como se sente?

– Melhor – respondeu ela.

– Suou bastante?

– Ensopei três camisas.

– Muito bem... Agora a senhora está com a pele fresquinha que mete gosto. Isto de sezões, não é nada, se a gente acode a tempo e o sangue não tem maus humores. Mas quando tomam conta do corpo, nem o demo com ela pode. Que é do café? – pediu ele em seguida a Pereira.

– Já vem já... Homem, vou eu mesmo buscá-lo, lá à cozinha. A Maria Conga está ficando uma verdadeira lesma. Venha para aqui e espere-me um nadinha.

Levantando-se então da cadeira, indicou-a a Cirino, a quem fez sentar antes de sair.

Ficou este, pois, ao lado da menina e, como sobre o lindo rosto batesse de chapa a luz colocada numa prateleira da parede, pôs-se a contemplá-la com enleio e vagar, ao passo que da sua parte o anão lhe deitava olhares inquietos e algo sombrios.

Pousara Inocência a cabeça no travesseiro e, para ocultar a perturbação de se ver tão de perto observada, fingia dormir. Pelo menos tinha as grandes pálpebras cerradas e o rosto sereno; mas arfava-lhe apressado o peito e, de vez em quando, fugaz rubor lhe tingia as faces descoradas.

Pereira tardava; e Cirino com os olhos fixos, a fisionomia meditativa e um pouco de palidez, que denunciava a íntima comoção, não se fartava de admirar a beleza da gentil doente.

Uma vez, entreabriu os olhos e a medo atirou um olhar que se cruzou com o do mancebo, olhar rápido, instantâneo, mas que lhe repercutiu direito ao coração e lhe fez estremecer o corpo todo.

Sem saber por que, batia-lhe o queixo e um arrepio de frio lhe circulava nas velas.

– Sente mais febre? – perguntou Cirino muito baixinho.

– Não sei – foi a resposta, e resposta demorada.

– Deixe-me ver o seu pulso.

E tomando-lhe a mão, apertou-a com ardor entre as suas, retendo-a, apesar dos ligeiros esforços que para retrair, empregou ela por vezes.

Nisto, entrou Pereira. Inocência fechou com presteza os olhos e Cirino voltou-se rapidamente, levando um dedo aos lábios para recomendar silêncio.

– Está dormindo – avisou com voz sumida.

– Ora – disse Pereira no mesmo tom –, a tal Maria Conga deixou entornar a cafeteira, de maneiras que precisei fazer outra porção. Demorei muito?

– Não – respondeu Cirino com toda a sinceridade.

– Mas agora – observou Pereira –, é mister acordar a pequerrucha.

– Não há outro remédio.

Chegou-se o pai à cama e, com todo o carinho, chamou: Nocência! Nocência!

E como não a visse despertar logo, sacudiu-a com brandura até que ela abrisse os olhos espantados.

– Apre! Que sono! – disse o bondoso velho. – Num instante que fui lá dentro?!... Vamos, são horas de tomar a mezinha.

Deitara Cirino sulfato de quinina no café e diluía-o vagarosamente.

– Olhe, dona – aconselhou ele –, beba de um só trago e chupe, logo depois, uns gomos de limão-doce.

– Então, é muito mau? – choramingou a doente.

– É amargo, mas num gole mecê toma isto.

– Papai – recalcitrou a moça –, não quero... eu não quero.

– Ora, filhinha do meu coração, não se canhe; é preciso... Amanhã há de você sentir-se boa; não é doutor?

– Com certeza, se tomar esta poção – assegurou Cirino.

– Depois, quando eu ir lá à vila, hei de trazer para você uma coisa bonita... uns lavrados. Ouviu?

– Nhor-sim.

– Ande, Tico – acrescentou o mineiro voltando-se para o anão –, vai depressa buscar limão-doce; na cozinha há um meio cascado.

– Tome, dona – implorou por seu turno Cirino, aproximando o pires da boca da formosa medicanda.

Levantou uns olhos súplices e, agarrando resolutamente o remédio, bebeu-o todo de um jato.

Depois deu um suspiro de enjoo e ficou com os lábios entreabertos, à espera que o adocicado sumo do limão lhe tirasse o amargor do medicamento.

– Então – exclamou Pereira –, era maior o medo que a coisa em si! Você tomou a dose numa relancina.

– Amanhã de manhã, ou melhor, hoje de madrugada, temos que engolir outra dose – declarou Cirino. – Depois, a dona, poderá levantar-se.

– Ainda outra? – protestou Inocência com gesto de amuo.

– Nhã-sim; é de toda a percisão – replicou o amoroso médico, modificando pela suavidade da voz a dureza das prescrições.

– Decerto – corroborou também Pereira.

– Depois deve mecê deixar de comer carne fresca, ervas, ovos ou farinha de milho por um mês inteiro, e de provar leite por muito tempo. Há de sustentar-se só de carne de sol bem seca, com arroz quase sem sal e por cima tomará café com muito pouco doce.

– Fica ao meu cuidado – asseverou Pereira – olhar para o rejume.

– Agora, durma bem e não se assuste de lhe aparecer zoeira nos ouvidos e até de se sentir mouca. Isto é da mezinha; pelo contrário, é muito bom sinal.

– Estes doutores sabem tudo – murmurou Pereira, dando ligeiro estalo com a língua.

Não se descuidou Cirino, antes de se retirar, de novamente tomar o pulso e, à conta de procurar a artéria, assentou toda a mão no punho da donzela, envolvendo-lhe o braço e apertando-o docemente.

Saiu-se mal de tudo isso; porque, se tratava da cura de alguém, para si arranjava enfermidade e bem grave.

Com efeito, de volta à sala dos hóspedes, não pode mais conciliar o sono e, sem que houvesse conseguido fruir um só momento de descanso, viu ralar a aurora. Parecia-lhe que o peito ardia todo em chamas a subirem-lhe às faces, abrasando-lhe o pensamento.

Aquele venusto rosto que contemplara a sós; aqueles formosos olhos, cujo brilho a furto percebera, aquele colo alabastrino que a medo se descobrira, aquelas indecisas curvas de um corpo adorável, todo aquele conjunto harmonioso e encantador que vira à luz de frouxa vela, fatalmente o lançavam nesse pélago semeado de tormentos que se chama paixão!

Efeitos de tão temível mal já ia o mísero sentindo. Inquieto se revolvia (fato virgem!) no duro leito, ao passo que a respiração isocrônica e ruidosa do companheiro de hospedagem, o alemão Meyer, respondia ao sonoro ressonar do gárrulo José Pinho.

Inocência (1872)Where stories live. Discover now