X. A carta de recomendação

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Aquele bom velho, cuja benévola hospitalidade não tinha limites, julgara do seu dever tratar do melhor modo possível a Waverley, fosse ele o último camponês saxônio... Mas o título de amigo de Fergus fê-lo considerar como precioso depósito, merecedor de toda a sua solicitude e da mais atenta obsequiosidade.
 Walter Scott, Waverley



Quando Meyer abriu os olhos, já achou Cirino de pé, arranjando uma canastrinha.

– Oh! – exclamou ele em tom de louvor – O senhor madruga muito.

– É verdade – replicou o outro, um tanto melancólico.

– E Juque, ainda dorme!... Este Juque parece mais um tatu do que um homem... Todo o dia o estou acordando...

E juntando o feito ao dito, foi o pachorrento amo sacudir o criado. Depois de se espreguiçar à vontade, sentou-se este no couro em que dormira, e pôs-se a esfregar com todo o vagar os olhos papudos ainda cheios de sono.

– Deus esteja com vossuncês – disse ele entre dois bocejos. – Ora, Mochu, o senhor acordou-me no melhor do sono. Estava sonhando que voltara para o Rio de Janeiro e ia acompanhando uma música pelo Largo do Rocio afora. Conhece o Largo do Rocio? – perguntou a Cirino.

– Não – respondeu-lhe este.

– Xi! Que largo! Hein, Mochu?

E novo bocejo cortou-lhes a descrição da louvada praça.

– Juque – exclamou Meyer coçando a barba com ar alegre –, o dia hoje está claro e bonito. Havemos de apanhar pelo menos umas doze borboletas novas.

– E quanto me dá Mochu, se eu agarro vinte e cinco?

– Vinte e cinco? – repetiu o alemão com alguma dúvida.

– Sim, vinte e cinco... e até mais, vinte e seis. Diga, quanto me dá?

– Oh! eu dou a vóce dois mil-réis.

– Está dito, fecho o negócio. Eu cá sou assim, pão pão, queijo queijo; tão certo como chamar-me José Pinho, seu criado, carioca de nascimento e batizado na Freguesia da Lagoa, lá para as bandas do Brocó, e...

– Agora – interrompeu Meyer –, vá buscar água para lavar a cara, e tire sabão e pente na canastra.

– Olhe, Sr. doutor – continuou o camarada sentado sempre e voltando-se para o lado de Cirino –, esta minha vida é levada de seiscentos mil diabos. Nós saímos do Rio já há mais de dois anos; não é, Mochu?

– Vinte e três meses – retificou Meyer.

– Pois bem; desde esse tempo estamos a viajar como se fosse penitência de confissão. E não é só isso, não, senhor. Todos os dias, ando pelo menos nove léguas correndo aqui e acolá, dando voltas, caindo, atrás dos bichos voadores...

– Juque! – tentou atalhar Meyer. – Olhe...

– Pois é o que lhe digo – prosseguiu José Pinho. – Tenho hoje uma raiva daquelas porcarias todas... Nem sei por que, Nosso Senhor Jesus Cristo foi criar esta súcia de criaturas sem préstimo... Enfim, Ele é quem sabe... Quanto a mim, se pudesse, atacava fogo em todas as lagartas, porque da lagarta é que nascem esses anicetos, que estão enchendo mundos... Mas, veja, Sr. doutor, lá na terra deste homem (coitado, é bem bonzinho e me estima muito!), valem esses bichos mais do que ouro em pó... Também, se o Mochu não gostasse de mim, havera de ser muito ingrato... Outro como eu não encontra mais, não, senhor... Tenha a santa paciência... Não, senhor, isto é o que lhe posso afiançar.

Inocência (1872)Où les histoires vivent. Découvrez maintenant