XX. Novas histórias de Meyer

31 3 0
                                    

Disse-lhe Sancho: Cada qual abra bem o olho e fique alerta, porque o diabo entrou na dança e se lhe deram ensejo, ver-se-ão maravilhas. Virai-vos em mel, e as moscas vos comerão.
Cervantes, Dom Quixote, Cap. XLIX



Uma ocasião, de volta do trabalho diário, atingiu a habitual irritação Pereira contra Meyer grande intensidade. Entrara cabisbaixo, sorumbático e fez gesto a Cirino de que precisava falar-lhe a sós. Dali a pouco, saindo ambos, caminharam silenciosos pela estrada até a um regato que ficava a meio quarto de légua da casa.

– Que terá este homem hoje? – dizia Cirino consigo mesmo. – Talvez vá chegando o momento de tratar do assunto.

Voltou-se de repente Pereira e, com voz alterada, prorrompeu em exclamações:

– Sabe, doutor, que não posso mais aturar esse alamão?... Aquilo é um mandingueiro, uma suçuarana, vinda do inferno para me botar a perder!... Meu irmão... meu irmão, que presente me fez você!...

– Mas, que houve? – perguntou Cirino.

– Olhe... se não fosse aquela carta, e a palavra que dei ao maldito... mil raios o partam, surucucu do diabo! Potro melado!... já um bom balázio lhe teria varado os miolos.

– Que novidades há então, Sr. Pereira? – tornou a inquirir Cirino.

– Vim mesmo ate aqui para tirar este peso do coração...

– Mas...

– Sabe o senhor que aquele Mochu é pior que um tigre preto?... Parece homem à toa, um punga, incapaz de matar uma pulga, não é?... Pois aquilo é uma alma danada... um sedutor...

– Sempre as suas desconfianças! – observou Cirino.

– Desconfianças, não: agora, certeza. Pois o que quer dizer o homem todo o dia... estar a lembrar-se da menina... Procurar trazê-la a conversa? "Como está sua filha?" – pergunta-me ele sempre. "Está boa, de uma vez para todas". E ele, toda a vida a insistir... Isto me põe o sangue a ferver, mas vou-lhe respondendo com bom modo... Hoje, saiu-se o cujo de seus cuidados e disse-me como quem toma leite com farinha de milho: "Sua filha vai casar?" "Vai, respondi-lhe todo trombudo". "Com quem?" – Tive vontade de lhe dizer: "Não é da tua com seu bisbilhoteiro, seu biltre", e atacar-lhe uma cabeçada, mas, como é meu hóspede, secundei-lhe enfarruscado: "Com um homem do sertão que há de amolar a faca na pele da barriga do mariola que vier mexer com a mulher dele". O alamão não se deu por achado e, com todo o sem-vergonhismo, me retrucou: "Pois o senhor faz mal. A sua filha é muito mimosa e deveria casar com alguém da cidade". – Então, perdi a paciência: "Mochu, lhe disse, cada um manda em sua casa como entende: eu na minha, não quero ser anarquizado"; ele, quando me viu fulo de raiva, pediu-me mil desculpas, contou-me muitas histórias, isto, aquilo, aquilo outro, et coetera e tal, que era para bem de minha filha e não sei mais o que, numa língua que pouco entendi...

– Não fez bem – atalhou Cirino.

– Boa dúvida! Aquilo é uma alma danada... boa para as caldeiras de Pedro Botelho, um judeu... enfim, um caçador de anicetos: está dito tudo!... Mas ainda não lhe contei o mais... Parece que hoje estava mesmo com o diabo no corpo... Meteu-se no mato perto da minha roça, onde eu trabalhava com os meus cativos, e lá fazia um barulhão a quebrar galhos e romper o cipoal como se fosse anta; de repente ouvi uma gritaria muito grande; era o tal Meyer com o camarada José Pinho a berrar como dois minhocões. Corri a ver o que era e os achei muito contentes a olhar para uma barboleta grande já fincada num pau de pita. O alamão pôs-se a pular como um cabrito.

"É novo", me disse ele, "é novo!" "Novo o quê, Mochu?" "Este bicho, ninguém o descobriu antes de mim! É coisa minha... Entendeu? E vou botar-lhe o nome de sua filha!..."

Quando ouvi aquilo, fiquei tão passado, que não pude engolir o cuspo da boca... Vejam só... o nome de Nocência numa bicharada!. Até parece mangação... Agora, quero saber do doutor o que devo fazer... Venho pelo menos desabafar... Não posso meter uma bala naquele patife como bem merecia... mas também é demais tê-lo em casa... é demais! Peço-lhe um conselho... Felizmente, sempre o trago arredado de casa, e a menina de nada desconfia; do contrário como mulher que é, havera de me dar que fazer... Também não sei por que é que o Manecão não chega... só ele é quem havia de me livrar destes apuros... Uma vez que o tal alamão visse a rapariga com o noivo, deixava-a sossegada... Não acha? Olhe, palavra de honra, isto ansim não é viver! Fui feito para dizer o que penso, tratar bem a todos... mas estes modos que tenho agora, só Deus sabe quanto me custam... Até o meu serviço vai sofrendo, porque muitas vezes largo a roça e ponho-me a correr atrás dos bichinhos, só para não deixar de olho o tal marreco, em lugar de feitorar o trabalho dos negros... O meu fazendeiro é um diabo ruim e já velho... Ah! Meu irmão, que carga você me pôs em cima das costas! Eu então, que não nasci para esconder o que sinto cá dentro!...

E Pereira, de tão atribulado que trazia o espírito deixou-se cair num cômoro de terra.

Cirino, defronte dele, ficara de pé e pensativo.

Afinal, depois de breve dúvida, decidiu tentar fortuna e encetar a grave questão que lhe importava a felicidade.

– Sr. Pereira, disse bastante comovido, acho que o alemão faz mal em andar batendo língua em pessoa da sua família e dou razão às suas inquietações...

– Ah! Vosmecê é homem de confiança.

– Mas – continuou o moço a custo e parando em cada palavra –, penso que num ponto tem ele alguma razão... É quando... lhe deu... conselho... que o senhor não casasse sua filha... assim... sem perguntar a ela... se... enfim não sei... mas talvez o Manecão lhe não agrade...

Ergueu-se Pereira de um pulo e, aproximando a face, repentinamente incendida de cólera, junto ao rosto de Cirino:

– O quê? – exclamou com voz de trovão – Eu... consultar minha filha? Pedir-lhe licença... para casá-la?... O senhor está doido?... Ou está mangando comigo... Ai... que também...

E vago lampejo de desconfiança lhe iluminou a chamejante pupila.

Compreendeu logo Cirino a perigosa situação e, sem demora, tratou de desfazer a má impressão que produzira.

– Ah! – disse com fingido riso – É verdade... Isto são costumes da cidade... aqui, no sertão, há outros modos de pensar...

Desculpe-me, Sr. Pereira, este Meyer é que está a contundir-me todas as ideias. Pois eu julgo... já que pede a minha opinião, que o senhor deve continuar a ter olho no estrangeiro... e eu hei de ajudá-lo, quanto estiver nas minhas forças.

– Também agora – disse o mineiro depois de ligeira pausa –, não há de ser por muito tempo... Há mais de um mês que ele aqui para e já me... contou que breve segue viagem para Camapuã... Desenganou-se afinal... O tal meco não chegará ate lá... mas é o mesmo. Um destes dias, leva por aí algum tiro para lhe botar juízo na cachola, ou alguma facada que lhe ponha as tripas a mostra... Nem sempre há de ter cartas de irmão para sair-se bem da rascada... O diabo o leve para longe!... Voltemos, Sr. Cirino... Já demais temos deixado o bicharoco sozinho.

E encaminhou-se para a vivenda, acompanhado de Cirino. Ia este desalentado; na realidade, bem rentes lhe ficavam cortadas as esperanças que o haviam animado na tentativa de oposição ao projetado casamento da amada com o terrível e fatal Manecão.

Ainda a meio do caminho, voltou-se Pereira e disse-lhe peremptoriamente:

– Deveras, Sr. Cirino, aquelas suas palavras me buliram com o sangue todo... Ainda o sinto galopar nas veias... Que ideias estúrdias!... Que lembrança! Ah... a tal vida das cidades... cruzes!

Inocência (1872)Where stories live. Discover now